02/06/2013

Tolerância zero para lavagem de dinheiro

Cidade do Vaticano (RV) - O presidente do Instituto para as Obras de Religião (IOR), Ernst von Freyberg, entrevistado pela Rádio Vaticano, anunciou que o banco vai começar a publicar seu balanço na internet a partir de 1º de outubro de 2013.

Von Freyberg, nomeado em 15 de fevereiro Presidente do IOR pelo Conselho cardinalício que controla o Instituto, acrescenta que o balanço será certificado por uma consultoria internacional, atendendo às medidas demandadas pelo Comitê de Combate à Lavagem de Dinheiro do Conselho da Europa (Moneyval).

Na entrevista, cuja íntegra publicamos abaixo, o Presidente revela a necessidade de se comportar como qualquer outra instituição financeira, e garante que serão feitos controles contínuos nas cerca de 19 mil contas correntes do Instituto. 

O sr. gosta deste trabalho, de ter vindo de Frankfurt para Roma, e de trabalhar dentro do Vaticano?

“É um grande privilégio trabalhar no Vaticano, o ambiente é mais inspirador que se pode imaginar: é também um grande desafio servir o Papa para restabelecer a reputação deste Instituto”. 

Como o sr. imaginava que seria o seu trabalho, antes de começar aqui? 

“Diferente do que é. Quando eu cheguei, pensei que precisaria me concentrar naquilo que normalmente se define como lavagem de dinheiro e depósitos indevidos. Até agora não detectei nada. Isto não significa que não há, mas que esta não é a nossa principal preocupação. 
Nosso principal ponto é a reputação do Instituto. Nosso trabalho, ou melhor, o meu trabalho, é muito mais de comunicação do que inicialmente pensava. E mais ainda, de comunicação dentro da Igreja. Não fizemos o suficiente no passado. Isso começa em casa, com nossos funcionários, com aqueles que trabalham para a Igreja em Roma, com as pessoas da Igreja no mundo afora. Com aqueles aos quais nós devemos primeiramente transparência e uma boa explicação sobre o que fazemos e como tentamos servir”. 

Como é possível que alguém como o sr., com toda a sua experiência, queira trabalhar para o Vaticano, depois de todos os acontecimentos passados do IOR? 

“Não é algo que se queira. Não é algo que se sonhe, sentado em casa. Nem durante a entrevista, pensei: ‘eu realmente quero este trabalho’. Quando fui chamado, fiquei muito feliz e aceitei o convite, e eu acredito que isto vale também para os outros candidatos que foram entrevistados para o mesmo cargo. Uma vez aqui, acho que é uma boa experiência, constato menos complicações e problemas do que pensava, vendo de fora”. 

Como é um dia normal de trabalho em seu escritório? Olhando de sua janela, o sr. vê a Praça São Pedro e, portanto, tem um ambiente de trabalho completamente diferente do que a maioria das pessoas está acostumada. É como um dia de trabalho no escritório de Frankfurt?

“Um dia normal já começa de modo extraordinário, porque tenho o privilégio de morar na Casa Santa Marta, e a permissão de participar ocasionalmente da missa com o Papa. Por si só, isto já é um privilégio, estar lá às 7h da manhã e ouvir suas breves e sempre muito comoventes homilias. 
No escritório, o meu dia é estruturado em projetos. Eu sou um grande fã de enfrentar tarefas de uma forma sistemática ‘gestão de projetos’. 
Nós dividimos nossas grandes tarefas em projetos e subprojetos e eu faço parte das comissões que impulsionam estes projeto adiante.
Dedico algum tempo todos os dias, com o diretor e o vice-diretor, para analisar os assuntos do dia; preparo reuniões da diretoria, e me comunico. Falo dentro da Igreja, falo com jornalistas, hoje (terça-feira) almocei com o embaixador de um dos maiores países do mundo para lhe explicar o que estamos fazendo. Meu trabalho se divide em gestão de projetos, assuntos do dia e comunicação”. 

Obrigado por falar também conosco. Há quem diga que o sr. é uma espécie de diretor de meio período, pois não mora estavelmente em Roma. Como o sr. administra isso? 

“Nossos estatutos dizem que nós (a diretoria) devemos nos encontrar a cada três meses como comissão, e uma vez por mês eu deveria avaliar os resultados econômicos com o diretor-geral. Isto é o que os fundadores do IOR imaginaram para minha posição. 
Quando eu fui entrevistado, pediram-me ‘de um a dois dias por semana’; agora dedico ao trabalho para o Instituto três dias aqui em Roma, e mais um ou dois em outras partes do mundo. Hoje, acredito que com o passar do tempo, eu deveria me aproximar do que dizem os estatutos”. 

Mas por enquanto este tempo é apropriado para seu trabalho.

“Ao ver os nossos desafios, penso que precisamos de todas as horas possíveis para enfrentá-los”. 

Seu cargo está abaixo de uma comissão de cardeais. Como isso funciona, na prática?

“Temos uma comissão de cinco cardeais, que é a máxima instância do Instituto. Nós nos vemos a cada dois ou três meses, normalmente no âmbito da reunião de diretoria. O diretor-geral e eu nos reunimos mensalmente com a cúpula da comissão cardinalícia para mantê-la informada, mas também para coordenar nossas atividades”. 

Seu trabalho também engloba outras agências, como empresas de consultoria?

“Sim, existe uma agência que não é de consultoria, mas nossa supervisora, a AIF (Autoridade de Informação Financeira). Ela é a autoridade financeira que supervisiona todas as instituições financeiras do Vaticano. Com ela eu interajo regularmente e trabalho de perto. 
Em relação a consultorias externas, contratei vários, provavelmente os melhores consultores do mundo no combate à lavagem de dinheiro, para rever cada uma de nossas contas, estruturas e processos e detectar a lavagem de dinheiro. 
Assumimos especialistas em comunicação e um dos melhores escritórios de advocacia do mundo para nos ajudar a compreender melhor o nosso quadro jurídico e estar em conformidade com as leis”. 

Falando de lavagem de dinheiro: imagino que existam padrões que o sr. queira aplicar.

“A Santa Sé se adequou aos padrões internacionais. Eu aplico a lei e respeito os mais altos padrões solicitados pelos nossos bancos correspondentes. Eu pessoalmente recebo em minha mesa todos os casos suspeitos e tenho reuniões semanais com o responsável pelo combate à lavagem de dinheiro. Também temos uma política de tolerância zero em relação a clientes e funcionários envolvidos em atividades de lavagem de dinheiro”. 

A respeito do banco: mesmo que o termo não seja correto, o IOR é conhecido como o “Banco do Vaticano”, e está relacionado a uma série de mitos. À parte isso, o que é exatamente o IOR?

“O IOR é o mesmo desde que foi criado, em 1942. Ele faz exclusivamente duas coisas: recebe depósitos de seus clientes e os salvaguarda. Antes de tudo, somos um estabelecimento de tipo familiar que protege as verbas dos membros de sua família. Os membros desta família são a Santa Sé, as entidades ligadas à Santa Sé, a maioria das congregações com atividades no mundo, membros do clero e funcionários do Vaticano. 
O segundo serviço que prestamos, ao lado da proteção e da custódia, são operações de pagamento, ou seja, transferimos verbas a lugares onde entidades do Vaticano ou congregações têm suas atividades”. 

Resumindo, não é um banco?

“Não somos um banco. Nós não emprestamos dinheiro, não fazemos investimentos diretos, não agimos como uma contrapartida financeira. Nós não especulamos no câmbio ou em commodities. Recebemos dinheiro em depósitos e o investimos em obrigações do governo, obrigações corporativas e no mercado interbancário, onde depositamos com juros ligeiramente superiores, para podermos restituir aos clientes quando eles o quiserem”. 

O que existe em comum com os outros bancos é que vocês ganham dinheiro; no final do dia existe algum lucro. Isto é intencional ou é simplesmente algo que acontece?

“Nossa missão é servir. Se fizermos bem nosso trabalho, é provável que tenhamos um superávit. Nós contribuímos, em média, com 55 milhões de euros no orçamento do Vaticano e é um pilar econômico importante. Agora é provável que me você pergunte como ganhamos 55 milhões de euros. Em nossa conta existem três elementos básicos: os juros que pagamos a quem deposita; os juros que ganhamos com isso, e esta é a parte mais importante das entradas, e que por ano pode ficar entre 50 e 70 milhões de euros. Disso você pode deduzir nossos custos. 
Também temos alguns ganhos de obrigações, cujos preços sobem e descem, e daí você chega ao nosso lucro. Desta margem de juros e do câmbio em dinheiro de obrigações que possuímos, temos que subtrair o custo aproximativo das operações, de 25 milhões de euros”. 

Dinheiro que vai direto, imagino, para uma conta IOR para os propósitos do Vaticano, não?”

“Vai para uma conta que é para o Vaticano.”

Hipoteticamente falando: acabo de fundar uma congregação religiosa, eu venho até você, que serviço pode oferecer para mim e minha congregação?

“Somente dois: você pode depositar exclusivamente dinheiro recebido de quem o sustenta; nós o guardamos de modo seguro, lhe pagamos juros e o restituímos quando você precisar dele. Se você me disser que criou três províncias na Ásia, África e América Latina, eu posso lhe garantir a transferência de seu dinheiro a seus irmãos que estão fora fazendo obras de caridade, e assegurar que o dinheiro chegue a eles, mesmo nos lugares mais remotos do mundo”. 

Que tipo de serviço é único do IOR, que um banco normal não pode providenciar?

“O que é realmente único é que nós entendemos realmente o mundo da Igreja e a sua missão. 112 pessoas trabalham no IOR, e temos 19 mil clientes. A grande maioria deles são religiosas ou clérigos, que conhecem os funcionários do IOR há 20 ou 30 anos. Sabemos exatamente o que eles precisam, eles têm uma pessoa de confiança aqui e este relacionamento pessoal os traz aqui. 
Estamos em competição, como qualquer outra instituição financeira do mundo. Cada um de nossos clientes é chamado, constantemente, a ir para outros bancos. Eles ficam conosco porque querem permanecer aqui. 
Sabe, se perguntarmos se ‘o IOR deve fechar’, 99,99% de nossos clientes responderiam ‘não’. Eles querem permanecer aqui, querem guardar seu dinheiro aqui. Eles recebem serviço personalizado e a experiência demonstra que isto é muito seguro. O IOR é altamente capitalizado, tem um patrimônio líquido de cerca de 800 milhões em um balanço de 5 bilhões. Isto é o dobro do que se registra em um banco fora do Vaticano. 
Durante a crise financeira, nós nunca tivemos problemas. Nenhum governo teve que vir nos socorrer; nós somos muito, muito seguros”. 

O serviço especial do IOR é que seus funcionários conhecem os clientes e a Igreja, mas com o passar do tempo, outras instituições poderão também oferecer este tipo de serviço. Existem outros bancos, ou até bancos católicos, por exemplo, que poderiam oferecer um serviço igual? 

“Eles também podem oferecer um ótimo serviço. Não diria igual, porque cada serviço é diferente. Muitos de nossos clientes usam provavelmente outros bancos e comparam nosso serviço com o deles”. 

Por que o Vaticano deve ter um banco? Esta é uma pergunta muitas vezes colocada, especialmente agora, depois da eleição do Papa Francisco. Qual a sua resposta: por que o Vaticano tem um banco, ou por que precisa de um banco? 

“Eu vejo isso a partir de duas perspectivas: a primeira são os clientes. Eles nos querem aqui. Este é o motivo pelo qual 19 mil clientes optaram por depositar seu dinheiro aqui. A outra abordagem é se estamos fazemos um bom serviço ao Santo Padre. Com a nossa reputação atual, nós não prestamos um bom serviço ao Santo Padre e esta imagem desfigura a sua mensagem. E esta é a que considero a primeira e mais importante tarefa a lidar”. 

Para sair do escanteio?

“Na realidade, para sair do centro das atenções e voltar ao escanteio… (risos), fazer humildemente nosso serviço e não ficar sob os refletores o tempo todo”.

O sr. mencionou o número de clientes: em comparação com outros bancos, é maior, menor, na média...

“É minúsculo. Há poucos bancos menores do que o nosso Instituto”. 

O relatório realizado pela autoridade AIF, que o sr. mencionou antes, indicou, na semana passada, que há irregularidades em seis casos. Isto significa que o IOR está envolvido em comportamentos não apropriados para um banco do Vaticano? O que este número representa? 

“Antes de tudo, nos revela como surgem os rumores. Não são ‘ilícitos’, mas são ‘suspeitos’, e demonstram que nosso sistema de monitoração interna começa a funcionar. Isto significa que somos diligentes e que identificamos seis transações que pensamos possam ser inapropriadas e as relatamos ao nosso supervisor. Quando identificamos uma transação assim, nós imediatamente o comunicamos ao nosso supervisor AIF”. 

Este é o método da transparência da AIF e também de vocês. 

“É o sistema de assinalação, aplicável em todas as instituições dentro da Santa Sé. É o que se espera de um sistema financeiro moderno: ter um sistema que rastreia toda transação. Não somos um banco, mas como instituição financeira, estas normas são aplicáveis para nós. Nós rastreamos toda transação em que detectamos comportamentos suspeitos, e os ‘Suspicious Transaction Report’ são arquivados na AIF. Este sistema foi projetado para prevenir a lavagem de dinheiro sujo e o financiamento do terrorismo”. 

Muito se falou a respeito da “lista branca” do OECD, o Vaticano quer ser aceito como membro desta lista. Como o IOR contribui para isso? 

“Não existe uma “lista branca”. A intenção do processo Moneyval é identificar os países e jurisdições que podem causar riscos para o sistema financeiro global. Isto pode ser feito realizando avaliações do quadro jurídico de cada país ou jurisdição. Países e jurisdições considerados críticos são listados. A Santa Sé foi avaliada no ano passado, e de acordo com o relatório Moneyval, publicado em 2012, tem um sistema funcional em ordem e NÃO é considerada uma jurisdição crítica. Dito isto, nós somos um aspecto daquele sistema. Fomos chamados em especial, para adotar procedimentos e estruturas mais fortes, para detectar transações suspeitas e clientes suspeitos. Acabei de assumir a principal consultoria do mundo sobre estas questões para reescrever nosso manual sobre como detectar transações e clientes suspeitos e revisar todas as nossas contas. Estruturas e procedimentos estarão prontos no final deste verão e então teremos cumprido esta parte do processo. 
Iremos além e vamos rever todos os depósitos que fizermos até o final do ano”. 

Existem contas numerados no Instituto? Correm sempre boatos sobre somas supostamente enormes, anônimas..

“Este é outro bom exemplo de pura ficção. Não existem contas numeradas. Desde 1996 é tecnicamente impossível em nosso sistema efetuar um depósito numerado. Isto seria também contrário às leis do Vaticano. Eu mesmo verifiquei o sistema e fiz controles aleatórios, e nunca encontrei um sinal de contas numeradas”. 

Nem mesmo no passado?

“Não funcionariam no sistema”.

A respeito do relatório da autoridade máxima AIF da semana passada, pergunto: “Seria ‘transparência’ a nova palavra-chave do IOR”? 

“Transparência é a chave, mas não só, é importante o nosso objetivo final, quando já se é transparente: ser completamente limpos, o necessário para ser aceitos no sistema financeiro internacional. 
Transparência não é algo que o mundo sempre teve e que agora o Vaticano precisa ter. Se olharmos 15 anos atrás, éramos provavelmente uma instituição bastante normal, no sentido que todas as instituições financeiras privadas e públicas operavam com base no segredo bancário. Hoje existe ainda um grande debate na União Europeia sobre até que ponto o segredo bancário deve ir. 
Aí três coisas aconteceram: o primeiro foi o 11/09, quando os estadunidenses começaram a se estender para tentar identificar o financiamento do terrorismo. Este processo começou naturalmente nos maiores bancos do mundo e hoje interessa inclusive os menores institutos, nas menores nações. Isto levou dois anos. 
Depois vieram as mídias sociais e com a mídia social foi-se formando na opinião pública um conceito completamente novo do sigilo, inclusive na área de finanças.
Em seguida, veio a crise financeira, a necessidade e o desejo das autoridades fiscais de tratar de modo igual todos os contribuintes, chamando os sonegadores de impostos às suas responsabilidades. Novamente, isto exigiu que os institutos financeiros revertessem parte do segredo bancário. 
Estes três movimentos transformaram o ambiente financeiro mundial e nós fomos tardios em nos adaptarmos a este novo mundo. Agora, estamos correndo para chegarmos onde estávamos 15 anos atrás: em uma condição relativamente normal comparada com outras instituições financeiras”. 

Mas, como o sr. mencionou, no momento existe uma espécie de sombra no Vaticano, que mancha a imagem do Papado e do Vaticano. Obviamente, algo está errado ou ainda não foi colocado na prática. 

“Sim. Agora estamos recuperando nossa reputação. E isto é a coisa mais importante que devo fazer, remover esta sombra”. 

E isso é possível?

“Sim, acredito que somos uma instituição financeira limpa e bem administrada. Podemos melhorar em todos os campos, como todos nós, e estamos tentando ser tão bons quanto os institutos semelhantes. 
Nós precisamos nos comunicar. No passado não falamos com ninguém, nem mesmo com os nossos interlocutores mais próximos. Nós não falamos com os cardeais de modo contínuo, não falamos com a cúria, não falamos com a Igreja. 
É um direito de todo membro da Igreja Católica, em todo o mundo, ser informado a respeito desta Instituição. 
O que sabemos hoje? Nós começamos a falar com a mídia, a falar com a Igreja e a informar de modo continuativo nossos interlocutores fundamentais, e publicaremos um relatório anual, como todas as instituições financeiras deveriam fazer, e o publicaremos na internet no dia 1º de outubro, em nosso site”. 

Seu contrato é de cinco anos, não? 

“Para ser preciso, entrei no meio do contrato. Meu contrato termina em 2015.”

Em 2015, o que o sr. consideraria um sucesso? 

“Meu sonho é muito claro. Meu sonho é que nossa reputação seja tal que as pessoas não pensem em nós quando se fale do Vaticano, mas que ouçam apenas aquilo que diz o Papa”. 

(O texto acima foi livremente traduzido pela redação do Programa Brasileiro a partir do original, em inglês. A entrevista original pode ser vista na página em inglês da Rádio Vaticano. CM)

Rádio Vaticano 

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