Há cinco anos, o presidente americano, Barack Obama, combate com vigor o inimigo público número um de seu governo. Não, não se trata do terrorismo, das armas de fogo – nem mesmo dos republicanos. Obama quer acabar com a divulgação de dados sigilosos para a imprensa, os famosos “vazamentos de informações”. Desde sua primeira campanha para a Presidência, em 2008, Obama prometeu que seu governo seria o mais aberto e transparente da história dos Estados Unidos. Em seu discurso de posse para o segundo mandato, em janeiro deste ano, ele usou 15 vezes a palavra liberdade.
Na prática, faz o contrário. A Casa Branca aumentou seu controle sobre o contato de autoridades com a imprensa. As agências federais negam acesso a informações com base na Lei da Liberdade de Informação, sob a alegação de segurança nacional ou proteção de deliberações internas. A administração Obama usa o Ato de Espionagem, uma lei de 1917 originalmente concebida para processar espiões, para indiciar qualquer funcionário que revele dados confidenciais à imprensa. Em cinco anos, o secretário de Justiça, Eric Holder, indiciou seis funcionários públicos – o dobro dos indiciamentos feitos por todas as outras administrações americanas somadas.
“Um governo tem segredos legítimos, que precisam permanecer em segredo”, afirmou, na semana passada, o general de quatro estrelas americano Michael V. Hayden, ex-diretor da Agência de Segurança Nacional (NSA) e da Agência Central de Inteligência (CIA). Pode parecer óbvio, mas é o resumo de um conflito perene entre a imprensa e as autoridades: a busca do jornalista por informações versus a vontade do Estado e de seus representantes de querer mantê-las sob segredo. Ao mesmo tempo que é defensável algum sigilo, principalmente nas questões que possam colocar em risco a segurança do Estado e dos cidadãos, a falta de transparência é nociva e pode acobertar desmandos promovidos pelo Estado e por seus agentes. Não faltam vazamentos históricos para comprovar.
O equilíbrio que evita, ao mesmo tempo, irresponsabilidades e secretismos impõe limites ao comportamento tanto da imprensa quanto do Estado. Nos Estados Unidos, desde os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, a balança desequilibrou. Exacerbaram-se as prerrogativas do Estado de proteger as informações sigilosas diante da saudável investigação jornalística. Amparado por inúmeros atos e leis, o governo americano passou a investigar a tudo e a todos, sob o pretexto da segurança nacional. “O estado de segurança americano cresceu demais desde o 11 de setembro”, afirma Steve Coll, repórter da revista The New Yorker, um dos principais jornalistas investigativos americanos. “O serviço de inteligência e o Pentágono reconhecem que mais de 1 milhão de pessoas sabem segredos de Estado. Há tantos segredos no sistema, e não há um senso comum sobre o que deve permanecer em segredo ou não.”
Há duas semanas, a NSA admitiu que criou um banco de dados com ligações telefônicas e mensagens de voz de milhões de cidadãos, coletados daqueles que usam o serviço da operadora Verizon – a segunda maior dos EUA. O governo Obama deu ordem para a espionagem de cidadãos no dia 25 de abril deste ano, autorizando investigadores a ter acesso ilimitado ao local, duração e conteúdo de uma ligação, assim como mensagens de voz. A medida se ampara no Patriot Act, controversa lei de 2001 que suprime uma série de liberdades civis dos americanos. Segundo um documento, obtido pelo jornal britânico The Guardian, a NSA também tem acesso direto aos sistemas de Google, Facebook, Apple e outras empresas da internet. Por meio de um programa chamado Prism, ela tem acesso ao histórico da web e ao e-mail de usuários dos sistemas.
Diante de um aparato de segurança inchado, surgiu um medo crônico de vazamento de informações na administração Obama. O caso mais sintomático do furor do governo Obama contra vazadores é o processo contra o soldado Bradley Manning, de 25 anos. Manning foi preso em maio de 2010, acusado de fornecer informação ao inimigo, ao vazar mais de 700 mil documentos do Pentágono e do Departamento de Estado americano para o site WikiLeaks. Na semana passada, Manning começou a ser julgado num tribunal em Maryland. Ele se declarou culpado de dez acusações. As Forças Armadas americanas o acusam de 22 delitos, que podem ser punidos com prisão perpétua, sem possibilidade de liberdade condicional.
Quando Manning divulgou os telegramas diplomáticos e relatórios militares, em 2010, escreveu: “Quero que as pessoas vejam a verdade, independentemente de quem são. Porque, sem informações, o público não tem como tomar decisões informadas”. Entre outras coisas, os documentos que Manning vazou revelaram os gastos estratosféricos do governo da Tunísia com festas, enquanto os tunisianos enfrentavam inflação crescente e alto índice de desemprego. Dois meses depois das revelações do WikiLeaks, os tunisianos se revoltaram e depuseram o presidente Ben Ali, desencadeando as Primavera Árabe. Não foram as informações de Manning que causaram os levantes, mas com certeza elas revelaram detalhes do nível de corrupção que muitos tunisianos já suspeitavam existir.
A contínua e crescente guerra aos vazamentos do governo Obama se tornou a mais agressiva intervenção oficial contra o trabalho na imprensa nos EUA desde o governo Richard Nixon. Em 1972, os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein revelaram que o então presidente americano estava por trás do arrombamento da sede do Partido Democrata, no edifício Watergate, em Washington. Nixon fez tudo o que estava a seu alcance para impedir as investigações. Perseguiu jornalistas e obstruiu a Justiça. Dois anos mais tarde, renunciou – para escapar do impeachment. No caso de Obama, não se pode dizer que se trata de uma conspiração contra a democracia. Mas os atos de seu governo vão contra o espírito da Primeira Emenda à Constituição americana. Ela proíbe qualquer limitação à liberdade de imprensa. “Obama opera no limite da Constituição, e agindo como um monarca ”, afirma Eric Posner, professor de Direito Constitucional da Universidade de Chicago. “Ele é obcecado por evitar vazamentos comprometedores e quer controlar todas as informações, até as da imprensa.”
Uma prova dessa obsessão é a investigação governamental das linhas telefônicas da agência de notícias Associated Press (AP). Segundo a lei americana, qualquer quebra do sigilo telefônico de um repórter deve ser a mais restrita possível. O Departamento de Justiça americano autorizou a quebra de sigilo de 20 linhas telefônicas da AP. As linhas foram usadas por mais de 100 repórteres e editores nos escritórios de Nova York, Washington, Hartford e na sala de imprensa do Congresso americano, entre abril e maio do ano passado. Os registros incluíam ligações para a casa e para os celulares dos jornalistas. A AP soube da quebra do sigilo por uma carta enviada pelo escritório do procurador Ronald Machen Jr. A mando do secretário de Justiça de Obama, Eric Holder, o procurador Machen Jr. conduz uma investigação criminal para descobrir quem vazou informações confidenciais para uma reportagem da AP publicada em maio de 2012. A história revelou uma operação da CIA no Iêmen para impedir um atentado terrorista da al-Qaeda num avião que ia para os EUA.
Não foi um caso isolado. Em maio deste ano, o jornal Washington Post revelou que James Rosen, o correspondente-chefe do canal de notícias Fox News em Washington, foi investigado pelo FBI. Rosen publicou, em junho de 2009, uma reportagem com base num documento oficial informando que a Coreia do Norte faria um teste nuclear. Em seguida, Holder, o secretário de Justiça, expediu um mandado nomeando Rosen como “coconspirador” no ato de espionagem, porque “recebera informação confidencial enquanto fazia seu trabalho”. Como resultado, o Estado americano teve acesso a toda a correspondência entre Rosen e Stephen Jin-Woo Kim, conselheiro do Departamento do Estado e informante do jornalista. Mantido em sigilo na Justiça, o caso veio à tona após o escândalo da investigação do governo americano sobre a AP.
O ponto de equilíbrio entre aquilo que pode e deve ser divulgado e aquilo que precisa permanecer em sigilo é frequentemente achado pelo exercício do bom-senso e do discernimento editorial, diante de uma notícia potencialmente perigosa. “Em quatro décadas como editor, deparei centenas de vezes com essa circunstância. Posso garantir que os próprios editores sabem como agir”, escreveu Leonard Downie Jr., vice-presidente do jornal Washington Post e professor de jornalismo na Universidade do Arizona. Há alguns casos clássicos na história do jornalismo. Em 1961, o New York Times publicou uma série de pequenas notícias sobre o treinamento de 6 mil homens contrários ao regime de Fidel Castro que pretendiam derrubá-lo. Às vésperas da invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, pelos contrarrevolucionários, o jornal tinha a informação. Seria a primeira página do jornal. Depois de um acalorado debate entre editores, decidiu-se não dar a notícia. A invasão ocorreu e foi um dos maiores desastres da política externa de Kennedy, com centenas de mortos e mais de 1.000 presos.
No mês passado, Obama fez um discurso na Universidade de Defesa Nacional. Afirmou não haver “desculpas” para as investigações feitas por seu Departamento de Justiça de possíveis vazamentos de informações confidenciais. “Uma imprensa livre, a liberdade de expressão e o fluxo livre de informação ajudam a tornar-me responsável, ajudam a tornar nosso governo responsável e ajudam nossa democracia a funcionar”, disse. Para mostrar que não se trata apenas de retórica, Obama só precisa agora deixar os jornalistas fazer seu trabalho em paz.
Revista Época
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