08/07/2013

A esquerda e o rugido da plebe

A esquerda acusa pulsões incontroláveis em meio aos protestos, que seriam organizados por oportunistas

Por Patricia Fachin

“Eu vi vários companheiros, governistas ou não, com nojo das manifestações. Muitas pessoas vão de verde-amarelo, cantam o hino nacional, e simplesmente não têm o discurso que a esquerda gostaria de ouvir. Algumas se comportariam como num show ou micareta, outras ´distorcem´ a luta partindo para a depredação ou a pilhagem, outros seriam teleguiados pela grande imprensa. A esquerda passa a acusar pulsões incontroláveis em meio aos protestos, que seriam organizados e protagonizados por massas amorfas, passionais, volúveis”, critica o mestre em Direito Bruno Cava (*) em entrevista ao IHU OnLine.

Confira a entrevista:

A que atribui a adesão massiva ao Movimento Passe Livre e às recorrentes manifestações que se seguiram?

Em primeiro lugar, tem o fator global. Não falar dele seria deixar passar uma peça muito importante no quebra-cabeça. Como não ver pontos em comum entre o que está acontecendo no Brasil e na Turquia, ou no Egito, como parte do ciclo global disparado pelas revoluções árabes, em 2011? Multidões saem para as ruas, se encontram, se organizam, exprimem a indignação acumulada. 

Não ficam só no grito: ocupam, acampam, geram mídia, debates, propostas, aparecem novos grupos e coletivos. Autoconvocadas principalmente pelas redes sociais, elas se organizam de maneira transversal, sem um centro, sem ideologia, bandeira ou liderança unificadas. Pelo contrário, nos protestos, frequentemente emergem narrativas conflitantes, pautas fragmentárias, quereres muitas vezes contraditórios e inconciliáveis. 

As manifestações são imediatamente acusadas de não ter direção política, de apresentar demandas vagas ou nenhuma, de não ter futuro. A reação das agremiações políticas mais tradicionais e da grande imprensa é de perplexidade, desconfiança, chegando até ao desdém. Quando muito, demonstram alguma condescendência, como se fossem manifestações ingênuas, e necessitassem urgentemente de uma requalificação por parte de quem entende do assunto.

Essas manifestações não estão atreladas a movimentos sociais tradicionais nem a partidos de esquerda tradicional. O que isso significa?

Em primeiro lugar, que o campo de esquerda, como se autodefine, ainda é muito iluminista. Ainda alimenta a pretensão de guiar as “massas”, iluminando o caminho da revolução. A esquerda acha que está com a razão. O que está fora de seu campo só contém uma carga errática e perigosa, que precisa ser controlada. É o procedimento típico da época das Luzes: me delimito definindo a não razão, o que é irracional. 

Aí você tem a Marilena Chaui falando pejorativamente em “magia” dos protestos, ou o Tarso Genro que chegou a apontar uma “hipnose fascista”. Deveríamos, aliás, declarar uma moratória sobre o termo “fascista”. Ele tem sido usado quase como um mecanismo de defesa, para se proteger de uma alteridade que ameaça a própria identidade. Parece tão deslocado, quanto alguns setores da extrema-direita, que acusam o governo Dilma de planejar um golpe “comunista”.

Eu mesmo vi vários companheiros, governistas ou não, com nojo das manifestações. Muitas pessoas vão de verde-amarelo, cantam o hino nacional, e simplesmente não têm o discurso que a esquerda gostaria de ouvir. Algumas se comportariam como num show ou micareta, outras “distorcem” a luta partindo para a depredação ou a pilhagem, outros seriam teleguiados pela grande imprensa... A esquerda passa a acusar pulsões incontroláveis em meio aos protestos, que seriam organizados e protagonizados por massas amorfas, passionais, volúveis. Daí essa obsessão, por assim dizer psicanalítica, de muitos comentaristas da esquerda, tentando revelar a verdade do desejo por trás do “rugido da plebe” e seus compromissos libidinosos mais aparentes.

A realidade está solta, sem gentileza para os esquemas, e por isso mesmo existem grupos de direita tentando capturá-la. Por isso, em vez de se fechar em sua própria razão iluminada, o caso talvez seja adotar a perspectiva da relação. Isto é, de que maneira esses protestos transformam a própria esquerda, a luta, a produção de subjetividade. Essas transformações estão encarnadas em que sujeitos, com que forma de organização? Está faltando uma antropologia perspectivista nas lutas, menos para “salvar” o ciclo de lutas, do que a própria esquerda tradicional.

As manifestações representam uma consciência de classe? Em que sentido?

Sobre as manifestações, Marcos Nobre, da Unicamp, escreveu um ensaio em formato instantbook, chamado “Choque de democracia”, onde ele caracteriza a mobilização como sendo “antipeemedebista”. Por peemedebismo, o filósofo designa uma lógica de governabilidade que aprisiona o sistema político brasileiro. É uma lógica de acordões e vetos seletivos, que engessa qualquer mudança e reproduz continuamente o bloco hegemônico no poder. 

O peemedebismo seria resultado de muitas décadas de destroçamento da cultura democrática no Brasil, quase um déficit de “consciência de classe”, sem real polarização das forças sociais, o que até se manteve nos governos Lula e Dilma. Marcos Nobre se contrapôs, por exemplo, a André Singer, preferindo caracterizar o nosso “espírito da época” com a ideia de peemedebismo, em vez do lulismo.

Mas as manifestações quebraram as pernas do argumento. Não adianta falar, agora, que teriam despontado manifestações antipeemedebistas, como se isso não tivesse nada a ver com todo um conjunto rico de requalificações durante os últimos 10 ou 15 anos. Na realidade, as condições para que esse nível de mobilização e cultura democrática pudessem ocorrer foram fortalecidas nesses governos. Paradoxalmente, contra os próprios governos. Como se houvesse dois lulismos, para complexificar um pouco a tese de Singer.

Por outro lado, como percebe manifestações propostas pelos movimentos tradicionais a exemplo da CUT, do MST, e das centrais sindicais? É um movimento dentro do atual movimento?

Nesta altura, não dá para delimitar um “dentro” e um “fora” do movimento atual. Está tudo em disputa. A própria linha está em disputa. Quero dizer, agora tudo é zona de transição, uma franja de recomposição. Essa recomposição pode ser de classe, desde que organizada a partir das transformações (políticas, antropológicas, biopolíticas) que vem acontecendo nos últimos tempos. A CUT, por exemplo, tem muito a ganhar se conseguir se deixar pautar pelas lutas dos precários, do trabalho informal em geral, que vem se tornando onipresente. O MST, por sua vez, se empenha em muitas atividades formuladoras de alternativas ao desenvolvimento. Vale lembrar que, no Egito de 2011, os sindicatos e as ligas campesinas exerceram um papel crucial, miscigenando-se às mobilizações organizadas diretamente pela juventude conectada nas redes sociais.

Ao longo dos governos Lula e Dilma, houve muito incentivo à compra de automóveis no país. Como entender o alto investimento em transporte individual em detrimento do transporte coletivo?

Não dá para culpar o indivíduo de querer ter um carro particular. Chega a ser perverso você favorecer a elevação da renda da população para, a seguir, culpá-la por querer consumir. A crítica ao consumismo agora que os pobres consomem têm uma impostação elitista insuportável. O objetivo principal nunca foi dividir o bolo, mas comê-lo. O que se deve perguntar não é por que as pessoas preferem carros particulares ao transporte coletivo. Mas, sim, na metrópole brasileira, por que é preferível andar de carro e não ônibus ou metrô. A resposta é evidente. Então como tornar o transporte coletivo preferível? Mais barato, mais rápido, mais seguro?

Quais são os principais déficits do transporte público brasileiro?

É outra pergunta que não exige grandes conhecimentos sobre urbanismo, arquitetura ou engenharia de transportes. Pensada desde cima, desde os gabinetes, negociatas eleitorais e conchavos, a cidade brasileira do século XXI funciona como uma grande fábrica de valor. As linhas e fluxos são organizados para conduzir a população de regiões-dormitórios para os centros de serviços, e vice-versa. 

A locomoção é taxada de maneira que qualquer outra utilização (digamos, ir ao cinema no domingo) exija um dispêndio que, para muitos, é demasiado oneroso. Nos dias úteis, a superlotação e a lentidão desaconselham qualquer deslocamento que não seja no circuito casa-trabalho. Todo o sistema parece sempre à beira do colapso, bastando problemas localizados para estancar o escoamento. Em algumas cidades, como São Paulo ou Rio de Janeiro, essa situação está se generalizando para todos os horários do dia. A resposta dos governos tem sido construir grandes canais viários, corredores de ônibus e linhas expressas.

Como avalia a proposta de um plebiscito para votar a reforma política? Quais as possibilidades e implicações dessa proposta?

É mais um sintoma de que o medo mudou de lado. Essa oferta por si só já demonstra a tremenda força das manifestações. O poder constituído não faz concessões à toa. Começará a testar a força dos protestos, barganhando medidas e propostas que permitam-no retornar à tranquilidade dos gabinetes e seus projetos negociados desde o alto. Independentemente dos plebiscitos, reduções do preço da passagem, “pacotões” de emergência, não se pode perder de vista que tudo isso é uma conquista direta do poder constituinte que ocupou as ruas. A continuação dessas vitórias, a transformação disso em novas instituições, na regeneração das existentes, depende da continuação das lutas, de sua permanente reinvenção e remotivação. O tumulto é o pulmão das democracias, e esse propósito constituinte não pode ser esquecido. Os plebiscitos, assim, podem ser boas oportunidades para a reafirmação de propósito. Concessões? Sim, obrigado. Mas a gente quer é mais.
* Bruno Cava é graduado e pós-graduado em Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA, graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e mestre em Direito na linha de pesquisa Teoria e Filosofia do Direito. É blogueiro do Quadrado dos loucos e escreve em vários sites; ativista nas jornadas de 2013 e nas ocupas brasileiras em 2011-2012; participa da rede Universidade Nômade, e é coeditor das revistas Lugar Comum e Global Brasil.
Dom Total

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