08/08/2013

Contexto histórico da Parábola do Bom Samaritano

O início da vida pública de Jesus foi marcado por uma grande e crescente receptividade ao seu projeto  pelo povo empobrecido. A princípio, ele fascinava a todos — “As multidões acorriam para Jesus” (Lc 6,17-19) —, mas, pouco a pouco, Jesus foi aprofundando sua postura, foi radicalizando sua opção pelos pequenos, marginalizados e excluídos da sociedade (Lc 4,18-19). A “lua de mel” com todos, a era de “paz e amor”, durou pouco. Começaram a surgir conflitos com poderosos (Lc 13,31), pois sua prática incomodava os interesses dos que viviam explorando o povo. Jesus descobriu que precisava formar com mais profundidade seus discípulos e discípulas, pois percebeu que a adesão popular inicial era “fogo de palha”. Os conflitos com os poderosos da economia, da política e da religião aumentavam cada vez mais. Em seus últimos dias, os embates  de Jesus com as autoridades judaicas e grupos religiosos e políticos de renome se intensificaram.

Por razões históricas, reinava entre judeus e samaritanos um grande ódio. Alguns motivos aparecem nas escrituras. Os samaritanos fizeram resistência à reconstrução do templo de Jerusalém, após o retorno do exílio babilônico (cf. 2Rs 17,24-41 e Esd 4,1-5). Em Eclo 50,25-26 os samaritanos são considerados “um povo estúpido”.  Uma interpretação rabínica de Ex 21,14 diz expressamente que os samaritanos não são “próximos”.

Do lado judeu, a hostilidade era tão grande que, nas sinagogas, os samaritanos eram freqüentemente malditos; os judeus rezavam a Deus para não dar a eles nenhuma parte na vida eterna, recusavam um testemunho feito por um samaritano, não aceitavam nenhum serviço deles. 

As relações entre os judeus e os mestiços samaritanos, que estiveram submetidas às mais diversas oscilações, tinham experimentado, nos tempos de Jesus, especial agravamento, depois que os samaritanos, entre 6 e 9 E.C., durante uma festa da Páscoa, por volta da meia noite, tornaram a praça do templo impura, esparramando aí ossadas humanas; reinava de ambas as partes ódio irreconciliável. Vê se, então, claramente que Jesus escolhe exemplos extremos.

Afirma o historiador do século I, Flávio Josefo: “Samaritanos armaram emboscadas para peregrinos que vinham às festas judaicas e o procurador Cumanus, subornado pelos samaritanos, não interveio. Assim judeus atacaram vilas samaritanas e massacraram seus habitantes.”

Muitos acontecimentos contribuíram para piorar as relações entre samaritanos e judeus, como a construção de um templo samaritano sobre o Monte Garizim no século IV a.E.C., e que foi destruído pelos judeus sob o reinado de João Hircano, no final do II século a.E.C. O monte Garizim é mais alto, muito mais imponente do que o monte Sião, onde foi construído o templo de Jerusalém. A própria questão geográfica pode ter gerado ciúmes e críticas de ambas as partes.

Também azedou as relações entre samaritanos e judeus a finalização do Pentateuco samaritano na segunda metade do século II a.E.C. O texto sagrado samaritano é o Pentateuco, os cinco primeiros livros, com algumas diferenças em relação ao Pentateuco judaico-cristão. Por exemplo, a versão samaritana de Dt 27,4 cita o monte Garizim, enquanto a versão judaica de Dt 27,4 faz referência ao monte Ebal. Os samaritanos não reconhecem os demais livros da Escritura judaica como textos sagrados.

Esse “ódio irreconciliável” entre judeus e samaritanos foi cultivado ao longo de quase mil anos de história. É possível que se tenha iniciado com a separação dos Reinos do Norte e do Sul, em 931 a.C., quando Roboão ficou como rei em Judá, no Sul, e Jeroboão se impôs como rei em Israel, nas tribos do Norte. Essa separação foi forçada e violenta, e certamente deixou muitas feridas (cf. 1Rs 11,26–12,33). Em 722 a.E.C., o povo do Reino do Norte foi exilado para a Assíria. É provável que os “sulistas” tenham cantado vitória dizendo: “Foram exilados porque eram infiéis à Aliança e idólatras”. A Assíria “repovoou” o Norte com pessoas das mais diversas raças e etnias. No coração dos samaritanos do Norte pode ter ficado um ressentimento. A vez dos “sulistas” chegou entre 597 e 587 a.E.C., quando, após várias deportações, foram também exilados para a Babilônia. Os judeus do Sul sentiram na pele aquilo que haviam passado os “irmãos” do Norte. Depois vieram as diversas tentativas de retorno para a terra da promessa. A volta do exílio e o processo de reconstrução foram muito complicados, pois havia resistência tanto de judeus como de samaritanos quanto à fixação novamente na terra. É com base nessa história que se entendem os diversos atritos e agressões que se sucederam.

Nos tempos de Herodes, houve um grande crescimento econômico, à custa de um alto preço social. Muitas terras de judeus foram expropriadas no Norte, o que gerou uma massa de desempregados urbanos no Sul, com conseqüentes distúrbios sociais inseridos em um contexto propício para a disseminação da insegurança social.

É nesse contexto de injustiça social, de opressão econômica, política e religiosa que o episódio-parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) ganha eloqüência e precisa ser entendido. Na narrativa do Bom Samaritano vemos a Compaixão-misericórdia como um princípio básico para o seguimento de Jesus Cristo e do seu Evangelho, projeto de vida para todos a partir dos oprimidos.

Gilvander Moreira é frei e padre carmelita. Mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), do Serviço de Animação Bíblica (SAB) e Via Campesina. Autor de alguns livros: Compaixão-misericórdia, uma espiritualidade que humaniza (Ed. Paulinas, 1996), Lucas e Atos, uma teologia da História (Ed. Paulinas, 2004) e co-autores de vários livros do CEBI

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