A gravidade da situação advém de que a fome e a miséria não resultam da carência de bens materiais. Falta o bem maior do cuidado com o semelhante
Só a existência do mapa da fome nos questiona. Fome é imoral, dizia Betinho. Imaginemos que, em certa casa de família, haja dispensa abarrotada de alimentos. E os pais selecionam os filhos. Uns têm acesso a ela e comem à vontade até ao desperdício. Outros veem os irmãos bem nutridos, sabem que existem alimentos para eles, mas os pais lhos negam. E finalmente outros vivem tão alienados da família que nem sabem da situação dos irmãos nem dos recursos dos pais. Sofrem a fome pacientemente e mendigam migalhas.
Parábola da sociedade atual. Os armazéns, os hipermercados, os sacolões, os shopping centers dos países ricos e de alguns lugares de países pobres agridem os famintos e carentes com a montanha de bens de consumo inacessíveis. Sobram-lhes os olhares desejosos, angustiados e, às vezes, revoltados pela impossibilidade de usufruir dessa abundância exposta. Alimentam-se de sonhos. Sacrificam-se em vista deles. Iludem-se com a esperança de amanhã chegar até lá, como alguns agraciados da sorte conseguiram. Outros vivem em rincões de miséria generalizada e não sabem que existe tal mundo. Estes tendem a desaparecer porque até lá estão a chegar as ondas das redes de comunicação com os atrativos consumistas.
Horroriza-nos a insensibilidade do sistema que continua a reforçar tal injusta e imoral trilogia. Mais: ele se mantém, cresce unicamente por meio de tal monstruosa desigualdade, ao produzir bens cada vez mais sofisticados e supérfluos para as camadas aquinhoadas e ao excluir os desprovidos de recursos financeiros. Longe de qualquer horizonte do bem comum!
A gravidade da situação advém de que a fome e a miséria não resultam da carência de bens materiais. Falta o bem maior do cuidado com o semelhante. O individualismo, que se tornou a ideologia da modernidade, fecha as pessoas cada vez mais nelas mesmas de maneira que se regem unicamente pelo próprio prazer e interesse. O cotidiano acostuma-nos a tal condição. Acontecem, às vezes, casos extremos que nos chocam. Recordemo-nos daquele dono de supermercado em Lima que, durante o incêndio, mandou fechar as portas para que os compradores não fugissem correndo sem pagar. E tal usura louca custou a morte a muitos. Tal pique de insânia acontece como manifestação da raiz última da injustiça social. No centro está o lucro e não a vida humana.
As linhas tristes do mapa da fome apontam para realidade de desumanidade a conviver com discursos humanistas. Parafraseando o filósofo alemão, não se trata de pensar nem falar da fome, mas de transformar as estruturas socioeconômicas para que ela seja abolida da face da terra. A mesa da refeição já está pronta pela capacidade produtividade alimentar atual. Faltam a vontade política e a ética para convidar a todos para o banquete da vida.
João Batista Libânio é teólogo jesuíta. Licenciado em Teologia em Frankfurt (Alemanha) e doutorado pela Universidade Gregoriana (Roma). É professor da FAJE (Faculdades Jesuítas), em Belo Horizonte. Publicou mais de noventa livros entre os de autoria própria (36) e em colaboração (56), e centenas de artigos em revistas nacionais e estrangeiras. Internacionalmente reconhecido como um dos teólogos da Libertação.
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