Ofereço aqui uma pequena contribuição para a reflexão em torno de laicidade e temas afins, especialmente nesta semana em que a PUC-Minas e a FAJE (Faculdade Jesuíta) organizam um simpósio internacional sobre Secularização, Religião e Sociedade.
A ‘laicidade’ é um conceito que nasceu ‘à sombra da Iluminação’ (e da Revolução Francesa). Numa sociedade em que a hierarquia da Igreja católica, avizinhada à aristocracia, tinha muito poder, os leigos (‘les laïcs’) procuraram emancipar-se, originalmente, nas questões civis e políticas. Numa atitude de ‘laicidade’, queriam banir a mistura de critérios eclesiásticos com as incumbências do legítimo poder civil. Muitos padres e religiosos, principalmente do baixo clero, estavam de acordo com isso. Mas essas reivindicações ‘laicas’ forma escalando, degrau por degrau, para o anticlericalismo (compartilhado por muitos crentes), daí para atitudes hostis à Igreja como tal, depois, para a exclusão da religião das instituições civis e finalmente para um agnosticismo ou ateísmo militante. Como nem sempre fica claro em que degrau dessa escala se está, convém prudência no uso do adjetivo ‘laico’ (que é, no fundo, um termo que pertence ao campo semântico da Igreja). Levando em consideração nossa realidade, eu aconselharia usá-lo apenas para indicar o que diz respeito à devida distinção entre Igreja e Estado em matéria de responsabilidade civil.
O termo ‘secularização’ tem igualmente uma trajetória que passa pela Igreja. ‘Saeculum’ foi o termo que os teólogos cristãos de língua latina usavam para se referir ao mundo, especialmente no aspecto daquilo que é passageiro, o mundo que passa, em contraste com aquilo que não passa, o ‘aeternum’. Daí chegou-se a chamar os clérigos que viviam ‘no mundo’, isto é, não em conventos ou mosteiros, de seculares. A maioria dos padres em nossas cidades pertencem, assim, ao ‘clero secular’; os sacerdotes e diáconos que fazem parte de uma congregação religiosa constituem o ‘clero regular’, isto é, obediente a uma ‘regula’ de congregação religiosa. Os religiosos não sacerdotes ou diáconos, como também as religiosas, não fazem parte da hierarquia, não pertencem ao clero e, neste sentido, são leigos. Evidentemente, em geral não se faz esta sutil distinção! Simplificando, fala-se em clérigos (que têm as ordens sagrados, sacerdócio ou/e diaconato), leigos (que não as têm) e religiosos (que podem ou não ter as ordens sagradas). O termo ‘secular’ ora é usado para indicar o que não pertence a uma congregação religiosa (por exemplo, os clérigos seculares, os padres diocesanos), ora para indicar o que não pertence ao âmbito religioso em geral, num sentido que se aproxima de ‘laico’. Em espanhol, o que nos chamamos leigo ou laico se chama ‘seglar’ ou ‘secular’.
Situação terminológico complexa, espelho de uma evolução histórica igualmente complexa. Para explicar, inicialmente e em termos simples (se possível), o que se entende por pensamento laico ou secular, eu diria que se trata da atitud de não misturar as coisas de Deus com as coisas do mundo, dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Mas isso não tão simples assim, pois para quem acredita em Deus também César pertence a Deus... Um exemplo: em nome da Constituição Nacional pode-se reclamar do Estado respeito à justiça social, em base da ética ou moral leiga. E quando o episcopado levanta essa mesma exigência diante do Estado, não pode fazê-lo em nome de princípios religiosos; tem de formular sua exigência em base da ética laica. O argumento religioso não vale diante do foro do Estado. Num outro momento, porém, o Presidente da CNBB poderá conversar com o(a) Presidente da República para convencê-lo(a) de sua responsabilidade diante de Deus, mas isso é terreno privado...
Os que pensam em termos de ‘cristandade’ ou, mais amplamente, os assim chamados fundamentalistas religiosos, não fazem tal distinção entre o âmbito mundano ou secular e o âmbito religioso. E isso é muito perigoso, pois, como diz S. João, “a Deus ninguém nunca viu” (João 1,18). Portanto, quando, nas coisas deste mundo, se introduz Deus de modo imediato, sem as devidas mediações de nossa razão, corre-se risco de introduzir uma instância suprema e soberana, infalível e incontrolável –portanto, irresponsável–, que talvez seja imaginária, escapando de nosso instrumento de verificação, que é a razão aplicada à experiência. É isso que os Iluministas quiseram banir. Só que alguns despejaram a criança junto com a água do banho...
O assunto é complexo, mas, encerrando por enquanto, lembro o bom senso: deixar Deus ser Deus e não manipulá-lo para coisas que, antes de mais nada, devemos examinar com a razão que –acredito– Ele nos Deu.
Johan Konings Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro (1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom Helder Câmara.
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