“Se você sabe mesmo escrever, não precisa usar roupas engraçadas.”
JAMES DICKEY
O Quixote de Picasso: vitima da literatura
Depois que escrevi aqui sobre o que chamo de literatura de autoatrapalhação – aquela que se opõe à autoajuda –, a questão do enfoque utilitarista da leitura não parou de atravessar meu caminho sob as mais variadas formas. Fez isso tantas vezes que me induziu à conclusão de que o tema está boiando no ar do nosso tempo.
Primeiro foi uma pergunta do mediador Rosel Soares na Festa Literária Internacional de Cachoeira (BA), há duas semanas, sobre a capacidade que a literatura teria ou não teria de nos transformar em pessoas melhores. Em seguida, devido a uma série de viagens ligadas ao lançamento do meu novo livro, vieram os repetidos encontros com livrarias de aeroporto, essas lojas peculiares – e no meu caso praticamente inúteis – que tendem a concentrar seu estoque em autoajuda, elevação espiritual, gerenciamento, picaretagem explícita e outros gêneros com títulos imperativos: “Faça”, “Seja”, “Não faça”, “Não seja”…
Finalmente, esta semana, dois golpes de misericórdia: dei uma entrevista por telefone a um programa da ótima TV universitária de Caxias do Sul (RS), sobre os prós e contras da autoajuda na formação de leitores, e tropecei num artigo imperdível da revista “New Yorker” chamado “Deve a literatura ser útil?” (em inglês), no qual Lee Siegel – o mesmo crítico que já andou levando aqui uns cascudos por apregoar a “morte do romance” – questiona com lucidez o quase onipresente discurso da “empatia” como justificação para a literatura.
Faz alguns anos que, assediados por críticos e não-leitores (categorias, curiosamente, muitas vezes superpostas) que lhe esfregam na cara sua crescente irrelevância cultural, muitos escritores vêm adotando uma defesa baseada no estímulo que a ficção daria às faculdades empáticas do leitor. Alegam que as narrativas inventadas aguçariam em quem as lê a capacidade de imaginar o outro, conceber o diferente e, portanto, ser mais compreensivo, democrático, compassivo, humano.
O argumento, além de bonito, é daqueles que parecem fazer sentido – acho provável que, em algum nível, faça mesmo. O escritor israelense Amós Oz formulou-o assim numa entrevista que me concedeu há dois anos no Rio:
Considero a curiosidade uma virtude moral. Uma pessoa curiosa é melhor do que uma pessoa não curiosa, porque a curiosidade implica certa empatia, a capacidade de sentir como o outro sente. É por isso que a literatura é um dos antídotos contra o fanatismo.
O problema começa, segundo Siegel, quando se toma o discurso da empatia como razão de ser da literatura. Citando dois estudos “científicos” recentes que alegam ter comprovado com estatísticas que a leitura de ficção traz mais benefícios sociais do que a de não-ficção – porque, justamente, capacitaria melhor as pessoas para a compreensão do que vai na cabeça e na alma do próximo –, o crítico inverte sabiamente o raciocínio para expor como derrota da ficção o que parece uma vitória:
Em vez de proclamar a superioridade da ficção sobre as habilidades práticas que seriam conferidas pela leitura de não-ficção, os estudos sugerem que os efeitos práticos são um parâmetro indispensável pelo qual as virtudes da ficção devem ser julgadas. Ler ficção é bom, segundo esses estudos, porque transforma você num agente social melhor. (…) Os americanos sempre se sentiram desconfortáveis com qualquer atividade cultural que não conduza a resultados palpáveis.
Bingo. Siegel vai ainda mais longe e faz uma provocação brilhante, embora questionável: separa de forma radical empatia de compaixão ao dizer que algumas das pessoas com maior capacidade de compreender emoções e pensamentos alheios que ele conhece são executivos e advogados – que, como se sabe, não necessariamente usam tais habilidades para o bem do próximo.
Seja como for, o ponto fundamental me parece ser um só: a melhor literatura, como toda arte, não será nada se não nascer absolutamente inútil e livre. Depois disso, tudo bem, pode ganhar um milhão de aplicações práticas ao gosto do freguês. Inclusive, vá lá, a de aprimorar moralmente o leitor.
No entanto, como lembra Siegel, a própria literatura sabe que não nasceu para boa samaritana. Sabe tão bem que levou alguns de seus mais célebres personagens a se perder para sempre nos labirintos da leitura: D. Quixote, Werther e Emma Bovary comprovam que ler é muito, muito perigoso. Mas só um leitor tacanho diria que todo o seu propósito no mundo é nos fazer tal alerta.
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