21/01/2015

A semana mais animadora de Francisco


A liberdade que gostamos de reivindicar é diferente da liberdade


que é nossa como filhos de Deus.




Por Michael Sean Winters*

O nosso notável papa há pouco terminou aquela que provavelmente foi a semana mais animadora de seu papado. As multidões no Sri Lanka e nas Filipinas bateram recordes, mas isso não é nada. O que mais surpreende é que ele mostrou os seus instintos pastorais em países que lhe eram completamente desconhecidos, e o fez com destreza e coragem. Hoje, gostaria de comentar sobre duas coisas que ele disse, e uma que ele não disse, que mostram por que este papa não só é tão querido e popular, mas também tão animador.


Não deve ser surpresa que o papa tenha falado e gesticulado a respeito dos pobres. A sua visita a um bairro carente foi algo que apenas ficamos sabendo depois que aconteceu. As imagens de seu encontro com crianças de rua num abrigo próximo da Catedral, em Manila, tocou a todos. Dirigindo-se aos jovens em Manila, e comentando sobre a leitura do Evangelho relativo a um jovem que caminha triste, o Santo Padre disse:


Vocês carecem de uma coisa. Convertam-se em mendigos. É disto que vocês carecem ainda. Aprendam a mendigar. Não é fácil compreender. Aprender como mendigar. Aprender como receber com humildade. Aprender a ser evangelizado pelos pobres, por aqueles que ajudamos, pelos doentes, órfãos, (porque) eles têm muito que nos ensinar. Eu aprendi a mendigar? Ou serei eu autossuficiente? Penso eu que não preciso de nada? Vocês sabem que vocês também são pobres? Você conhece a sua própria pobreza e a sua própria necessidade de receber? Vocês se deixam ser evangelizados por aqueles a quem servem? É isto o que os ajuda a amadurecer o seu compromisso de doar-se aos outros. Aprender como abrir a mão de sua própria pobreza”.


Aqui vemos a articulação mais forte de como ele enxerga a missão da Igreja para com os pobres:  não se trata apenas de ajudá-los nas circunstâncias materiais da vida. Não somos “bonistas” que acontecem de ir à missa. Precisamos dos pobres porque eles irão nos evangelizar. Não tenho certeza se saberia do que ele estava falando, exceto por um incidente em minha própria vida ocorrido há alguns anos. A minha companheira perguntou se nós poderíamos receber em nossa casa com um amigo que havia perdido o emprego e que também estava perdendo o apartamento. Eu conhecia esta pessoa e sabia que ela tinha se envolvido com drogas, então a única condição que coloquei foi que este amigo não trouxesse nenhuma droga para dentro de casa. Ele concordou. Mas, obviamente, algumas semanas depois, lá estava um punhado de drogas no canto do banheiro. O confrontei. Expliquei por que achei isso intolerável e ele pediu desculpas, mas o tempo todo ele se mostrava mais interessado em usar mais drogas, e não no que eu estava dizendo.


Neste encontro, percebi quão desesperador deve ser estar nesta situação como a dele, tão escravizado, não pelas drogas mas por minhas atitudes, meus comprometimentos, os meus afazeres. Não pude dizer, ao final da nossa conversa, o que pretendi falar: “Se isto acontecer de novo, terei de pedir que você saia”. Não pude fazer isso. Como ameaçar alguém assim, alguém nestas condições tão frágeis, simplesmente porque ele não consegue se conformar com minhas regras. Confesso, não me senti nada bem com a situação. Mas levar uma vida cristã não é se sentir bem, é? O Santo Padre falou contra a “colonização ideológica”. E, para muitos leitores do National Catholic Reporter, este foi o seu comentário mais bem acertado. Ele falou da “ameaça” de se redefinir o matrimônio e de não se estar aberto à vida. O Papa Francisco disse:


Enquanto muitas pessoas vivem em pobreza extrema, outras caem nas malhas do materialismo e de estilos de vida que abolem a vida familiar e as exigências mais fundamentais da moral cristã. A família está ameaçada também pelos crescentes esforços de alguns em redefinir a própria instituição do matrimônio mediante o relativismo, a cultura do efêmero, a falta de abertura à vida”.


Creio que o papa acertou na ordem: primeiro a pobreza, depois o materialismo, e então uma cultura que está imbuída com um tipo de ideias iluministas que, quando introduzidos em nossa compreensão de família, se tornam grandemente destrutivas.


Nos EUA, com o seu alto grau de divórcio, os debates sobre a redefinição do casamento civil para incluir os casais homoafetivos sendo uma ameaça civilizacional, me parecem exagerados. Faz bastante tempo desde que a nossa cultura estadunidense queria dizer por casamento aquilo que a Igreja quer dizer pelo termo matrimônio. Numa cultura mais tradicional como a das Filipinas, não tenho certeza de como questões como esta irão se desenrolar. Mas é surpreendente ver pessoas em estado de choque porque o papa ensina o que a Igreja o que ela sempre ensinou, e algo que, a até quinze anos atrás, nem mesmo a comunidade LGBT estava falando a respeito.


Continuo a acreditar que, com este papa, a mensagem da encíclica Humanae Vitae, com a sua advertência contra se ver a vida humana como algo a ser manipulado – e, portanto, algo não mais visto como um dom –, continua sendo profundamente verdadeira, mesmo se, nas circunstancias da vida dos parceiros, eles não se encontram em busca de formas para estar “aberto à vida” através da procriação. Não consegui encontrar o artigo nesta manhã, mas vi alguém contrastar o gentio, bondoso Papa Francisco com o maldoso e velho Papa Paulo II, porque Francisco disse que este ensinamento sobre a abertura à vida deve ser lidado de uma maneira pastoral, considerando a situação de cada casal. É claro que Francisco estava se referindo a Paulo II nesta passagem. Direi, repetidas vezes, até meus últimos dias: quando a história do século XX for escrita, Paulo VI será reconhecido como o maior papa do período.


Volto à “colonização ideológica”. Todos sabemos que o nosso governo e várias agências da ONU tentam fazer com que outros países adotem os nossos padrões quanto a assuntos como controle de natalidade, e em breve sobre o casamento homoafetivo, como uma condição para receber ajuda. É bastante irônico que os países com grandes emissões de gás carbônico como os EUA estejam dizendo, aos países com relativamente baixos níveis de emissão do mesmo gás, que os índices de suas populações são um problema. Isto põe de volta a questão do imperialismo. Porém, penso que qualquer pessoa minimamente coerente, de esquerda ou direita, pode reconhecer que a herança do iluminismo é uma colcha de retalhos e que as sociedades tradicionais estão dentro de seus direitos de resistir esta herança. Ontem, na missa, ouvimos durante a leitura de Coríntios:


Acaso, não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos?


Não poderíamos melhor resumir a postura ideológica subjacente do iluminismo do que render-se ao “vós sois de vós mesmos”. Mas como católicos, não somos de nós mesmos. Esta tensão entre os ideais iluministas e a nossa imaginação católica é delicada, às vezes capaz de frutificar em ambos os lados, mas sempre existindo esta dificuldade: a liberdade que nós ocidentais gostamos de reivindicar e celebrar é diferente da liberdade que é nossa como filhos de Deus, liberdade que somente é plenamente realizada numa autoentrega e ao nos tornarmos escravos do Senhor.


Finalmente, a coisa que ele não disse. Em Tacloban, onde o tufão deixou uma enorme devastação, o papa disse que devia se silenciar em face de um tal sofrimento e das questões que este sofrer levanta. Em Manila, depois de ouvir o testemunho de duas crianças de rua, ele falou que as lágrimas eram a única resposta que poderia lhes dar. Sempre se espera daqueles que ocupam altos cargos – papas, presidentes, primeiros-ministros – algo a dizer. Infelizmente, muitas pessoas ficam satisfeitas com as respostas simplistas, motivo pelo qual a propaganda política é, muitas vezes, eficaz. Mas o nosso maravilhoso Santo Padre reconhece que há sofrimentos que não têm resposta, aliás, que o esforço em dar uma resposta é ofensivo. O sofrimento é o outro lado do amor, melhor será dizer: a face do amor nas circunstâncias ruins; nós não podemos nem explicar o amor, e as tentativas de explicá-lo acabam roubando do amor o seu poder. Mais do que em qualquer palavra pronunciada, em seu silêncio o papa nos pediu para adentrarmos o mistério da nossa redenção, esperarmos por respostas não dele, mas de Cristo, respostas de consolo e solidariedade.


Gosto muito deste papa. O seu dom em falar com clareza permite-o alcançar as multidões nas partes mais profundas de seus corações – o que, incidentalmente, me faz sorrir quando um certo tipo de católico apresenta objeções ao Papa Francisco porque ele “é muito confuso”. A sua compreensão do poder do gesto vem não de um treinamento cênico, mas de um envolvimento poderoso com as Escrituras, entendidas como uma história de amor, amor absoluto, não como um campo de “verdades morais” e de silogismos jurídicos naturais.


Ele prega o Evangelho com tal força, mesmo quando a sua pregação reconhece ser necessário o silêncio, pois não há palavras. Quão abençoados somos nós por termos ele dirigindo a nossa Igreja neste momento da história, pedindo a todos nós, a todas as culturas e povos, para se renovarem nas águas batismais e abraçarmos sua missão, a nossa missão mais fundamental: pregar a boa nova, a boa nova aos pobres e marginalizados, uma boa nova desconfortável para os que estão confortáveis e que são afluentes; nas mãos deste papa, é a boa nova que reacende o frescor do Evangelho. É fácil ouvi-lo imaginando-se estar em Roma ou em Salonica, escutando a Pedro ou Paulo pela primeira vez.



Catholic Reporter, 19-01-2015.

*Michael Sean Winters é jornalista e escritor.


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