20/05/2015

Tutela democrática do Parlamento: freios e contrapesos nas Funções Essenciais à Justiça


Ao querer isolar-se de razões de justificação, grupos passam a querer evitar o próprio debate.




A abertura de canais discursivos e do debate é ponto nuclear para a afirmação da democracia, funcionalizando-se para a contraposição de divergências e reatividade de posições expostas no espaço público. Esta abertura para debate possibilita o embate entre o “eu” e o “nós”. Axel Honneth[i]situa a questão do debate democrático na esfera da formação democrática da vontade, que de maneira alguma pode ser limitada pelo direito, pela seara jurídica. A formação democrática da vontade apoia-se em um nível superior de liberdade, a liberdade social, em que se projetam argumentos e questionamentos em torno de práticas sociais e de instituições, propiciando nível reflexivo exponencial, na definição de conformações de ação e expectativa entre o ser e o outro em sociedade. A questão que pretendo tematizar neste artigo é o nível de asfixia que a seara do jurídico pode provocar na liberdade social. Em outras palavras, o que pretendo focar é o risco que uma judicialização imperativa e a aspirar onipotência pode provocar à democracia.


O risco de interferência progressiva da judicialização em fases internas ao processo legislativo pode redundar em ameaça ao exercício da plena atividade parlamentar e, por decorrência, é necessária a análise constitucional da Função Essencial à Justiça apta para tutelar a própria atividade parlamentar em seu desenvolvimento democrático. Assegurar a abertura discursiva do parlamento, para poder debater, propor, inspirar a discursividade, é assegurar que a ação cooperativa comunicativa se processe sem transformar-se em elitismo judicializado, a retirar da liberdade social a decisão e destiná-la a um círculo restrito atores sociais. O referencial teórico que adoto para a abordagem do tema é a teoria da justiça como análise da sociedade, de Axel Honneth. Iniciarei a exposição com o tema da patologia do jurídico e suas limitações em dar conta dos problemas comunicativos. Em seguida, abordarei a questão constitucional com a análise do contexto de freios e contrapesos, mas não uma abordagem voltada para a tradicional visão de freios e contrapesos entre os Poderes ou Funções do Estado. Meu centro de análise é tematizar a necessidade de se falar hoje em freios e contrapesos entre as Funções Essenciais à Justiça em um ambiente constitucional democrático.


A judicialização, as práticas sociais e instituições de caráter jurídico, estão guiadas por um tipo de liberdade específico, denominado como liberdade legal, cujo caráter é de liberdade negativa[ii]. O direito dota de liberdade o indivíduo para manter-se em autonomia privada perante o outro, permitindo-lhe uma dimensão privada de avaliação de seus interesses e de sua posição perante o outro. Permitem as instituições e práticas jurídicas em ação social uma não motivação ou consideração do outro em concreto, o debate social é afastado para se converter em uma oposição de prerrogativas. O jurídico e sua liberdade legal sustentam-se em um nível negativo de liberdade na medida em que a lei, a norma jurídica, seja ela constitucional ou não, é posta como um “não-debate”, um afastamento à necessidade de argumentar e proceder em ação cooperativa em relação aos outros sujeitos. Honneth[iii] destaca que o jurídico retira a argumentação de níveis de profundidade em convencimento democrático para postar o tema em uma ação estratégica.


O direito converte em risco o debate democrático quando as ações cooperativas são substituídas pela dimensão da estratégia processual, quando o interagir entre dois indivíduos, ou entre grupos sociais, deixa de ser uma troca argumentativa para transformar-se em uma sequência de atos processuais, como se a função do debate público equivalesse a elaborar a petição inicial, contestar, e daí recorrer. O direito é limitado por não ser apto a construir relações de solidariedade e ação cooperativa comunicacional reflexiva em reciprocidade, já que se antepara em projeções estratégicas em que o ato do ser para com o outro é concebido como relação de resultado de proveito legal não articulado em reatividade e cooperatividade. A limitação do jurídico como ação social é atrelada ao viés da liberdade negativa, na medida em que propicia a interação reativa que desmerece o exercício de justificação intersubjetiva de razões ou de decisões a serem compreendidas pelo outro.


Exemplifico o que quero dizer por desmerecimento do exercício de justificação intersubjetiva de razões ou decisões calcado na liberdade legal. A Lei n. 10.048/2000, em seu artigo 1º, determina, em abstrato, o atendimento prioritário de gestantes. Suponha-se mulher que realize teste de gravidez, com resultado, positivo, constatando que está grávida de dez dias. Uma ação estratégica, calcada na liberdade negativa, possibilita a esta mulher ir para a fila preferencial de um estabelecimento comercial. Ao ser contrastada da causa de estar na fila, não há argumentação pela sua necessidade de estar na fila preferencial, não há articulação intersubjetiva de razão ou decisão. Como resposta ao questionamento, a grávida de dez dias exibe seu resultado de gravidez e menciona a lei que lhe dá prioridade. Questionamentos de ação cooperativa são desmerecidos, mesmo que atrás da grávida de dez dias esteja uma grávida de oito meses com dificuldade para manter-se em pé. A liberdade legal permite o “fazer que não se vê” o outro, permite ignorá-lo, permite negá-lo em presença comunicacional. Em outras palavras, a liberdade negativa, o prescindir de justificar-se em eticidade, provoca um estreitamento dos canais discursivos de ação cooperativa na visão de Honneth, o que leva a um penetrar corrosivo de práticas estratégicas de adjudicação na liberdade social.


A limitação do jurídico relaciona-se com patologias que se manifestam na seara das práticas jurídicas essencialmente de duas formas: pela restrição comunicativa de agentes em luta social por reconhecimento, que passam a reduzir seu propósito interno em integração à condição de sujeitos de direito, de titulares de direitos em confronto, como afirma Honneht[iv]; e pela restrição de autorrealização provocada em virtude de deficit de identidade, que se aparta de desenvolvimentos cooperativos integrados em uma vida comunitária. Segundo Honneth, a liberdade legal passa a ser o ponto de referência do indivíduo, o que reduz a integração na vida ética democrática.


A crescente judicialização de questões colocadas em debate no Congresso Nacional, antes mesmo que aqui se encontrem definidas, e por vezes antes mesmo de plenamente iniciados e desenvolvidos os canais argumentativos, configura este risco de asfixia do espaço público democrático. A liberdade social é posta em ameaça, pois a ação estratégica do jurídico aspira a assumir proeminência sobre a própria discursividade social. Ao querer isolar-se de razões de justificação, grupos e pessoas passam a pressionar o parlamento não com fundamentos argumentativos, passam a querer evitar o próprio debate, lançando-o em fóruns de proibição, alçando mão da liberdade negativa para poder isolar o outro e, desta forma, sufocar a ação cooperativa em desenvolvimento. O Parlamento vê-se coibido na abertura do canal de discursividade. O jurídico, em vez de assegurar o desenvolvimento democrático da interlocução entre o “eu” e o “nós”, assume caráter elitista em que camada específica de atores sociais pretendem definir o que pode e o que não pode ser debatido. Saliento: debatido… não aplicável, válido ou inválido. A própria liberdade social é posta em crivos. A questão não é aqui considerada, no meu argumento, sob o mérito do que está sendo posto em discussão, o que trato é justamente da abertura para em ação social proceder-se à discussão sem a ameaça da mutação do debate cooperativo em ação de liberdade legal ou liberdade negativa em seu cunho estratégico.


A liberdade parlamentar é inibida, pois ela se afirma em um espaço de liberdade social, atingida em restrição pela lança de aportes de liberdade negativa, disposta a afugentar a interação intersubjetiva em si. Neste ambiente, é necessário mesmo compreender de forma reatualizada a imunidade parlamentar. Se em passado não tão distante as constrições ao parlamentar passavam-se pelas imposições de poder para coibir-lhe palavras, opiniões e votos, hoje pode-se interrogar de uma ameaça de liberdade legal que infiltra-se em patologia na liberdade social, ameaçando o parlamentar que vise questionar determinados padrões de práticas sociais ou instituições de caráter jurídico. O jurídico, de guarnição em tutela do Parlamento, pode converter-se em fonte de penetração ilegítima de outras esferas, Poderes e funções na formação da ação cooperativa, que sequer foi posta em deliberação.


A questão alcança problema ainda maior quando em progressão, após a formação normativa, a expressão da vontade democrática e da liberdade social que definiu algo como “bom” ou “mau”, que definiu um projeto coletivo a seguir-se, é posta em discordância pela opção do caminho a se seguir. Em outras palavras, questiona-se a opção democrática do Parlamento. A judicialização da opção democrática manifestada pelo Parlamento sai da esfera pública de debate da liberdade social e ganha o palco de instituições jurídicas. Nestas últimas, travestidas em argumentações de correção constitucional, o que se tem constantemente é uma iniciativa de ação estratégica para adotar uma visão de mundo diferente da assumida no Parlamento, a adoção de uma opção de mérito diferente por não se concordar com o canal democrático legítimo que optou por determinada linha decisória.[v]


Em tais hipóteses, em que a opção ou o direito de discussão pelas opções democráticas vê-se em questionamento, ou seja, a delimitação entre o espaço da liberdade social e da liberdade legal ou negativa, vê-se situação inusitada: o próprio espaço das instituições jurídicas é o ambiente em que se define o limite de resguardo da liberdade social e não intrusão do jurídico na ação cooperativa e suas decisões. O Poder Judiciário é posto cada vez mais com a atribuição de por-se em autolimitação, em respeito à posição firmada pelos canais democráticos discursivos, seja para respeitar-lhes a decisão, seja para não infiltrar-se em prejuízo da liberdade social. Não se limitar, abriria espaços para a renegação dos limites do jurídico e materialização de patologias do direito.


Ocorrendo a confrontação em instituições do Poder Judiciário, vê-se determinados atores sociais que autuam naquela, lançando-se em argumentos e razões a sustentar que determinada matéria está sob o crivo da liberdade negativa ou legal, incorrendo em crítica voltada aos rumos da ação adotados pelo Parlamento. Estes atores sociais, de forma legítima, considerando seu papel constitucional democrático, dirigem-se para questionar os rumos tomados pela concretização da liberdade social, na visão acolhida pelo Parlamento. Efetuam estes atores seu papel de função essencial à justiça justamente colocando em crítica o Parlamento, ao que se inicia verdadeira batalha em torno das delimitações, contornos e profundidade de incursão da ação cooperativa em face da ação de resistência não-discursiva estratégica, própria esta última do direito.


Em larga medida, este papel é efetivado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública e pela Advocacia Privada. A dinâmica constitucional projeta os atores sociais que problematizam opções e fixações adotadas pelo Parlamento, questionando-as em face da Constituição e da lei, visando em última medida sustentar que existe questão de liberdade legal ou liberdade negativa que foi invadida pela opção deliberada nos canais de liberdade social. Para contrapor-se a estas postulações, e assim estabelecer verdadeira estrutura de freios e contrapesos na prática social e nas instituições jurídicas, figura a Advocacia Pública, e no âmbito federal a Advocacia-Geral da União, como também Função Essencial à Justiça prevista constitucionalmente. Nas confrontações de abertura dos canais democráticos de discursividade, incumbe à Advocacia-Geral da União a tutela de opções deliberativas e da própria abertura de discursividade, preservando as atividades do Parlamento em seu papel institucional coligado à liberdade social.


Garantir o campo de debate e deliberação do Parlamento, resguardando em argumentação a autolimitação do Poder Judiciário em face da liberdade de conformação própria da intersubjetividade em sua de elaboração de arranjos sociais em ação cooperativa é tarefa da Advocacia-Geral da União, da própria Advocacia Pública como um todo. O desempenho desta tutela, que proporciona assumir vertentes para condução do projeto de coletividade traçado democraticamente, permite afirmar esta nova dinâmica de freios e contrapesos que deve existir. Uma dinâmica de freios e contrapesos entre as instituições a que se atribuem papéis diversos como Funções Essenciais à Justiça.


Sob esta linha a compreensão da Advocacia Pública como instituição de freios e contrapesos ao Ministério Público, tal qual à Defensoria Pública, permite que todas as relevantes instituições executem suas tarefas constitucionais. Resguarda-se contra o risco de quebra de limites do jurídico, ao mesmo tempo que se tutela o âmbito da liberdade social em face do âmbito da liberdade legal. O equilíbrio em todos os aspectos entre as funções é pauta e pressuposto para efetivo desenvolvimento democrático, pois sem isto pode haver o já destacado avanço onipotente do direito sobre a democracia, infiltrando a ação estratégica e caráter de liberdade legal às instituições que são guiadas para a afirmação da formação democrática da vontade.


Já não se pode mais falar somente em freios e contrapesos, com equilíbrio, entre os Poderes, é necessário tematizar os freios e contrapesos entre as Funções Essenciais à Justiça, com o respectivo equilíbrio, a impedir desníveis que abram espaços para patologias e infiltrações desfavoráveis às ações cooperativas da liberdade social em democracia.





        Honneth, Axel. Freedom’s Right: the Social Foundations of Democratic Life. Tr.: Joseph Ganahl. Columbia University Press, 2014.



[ii]      Honneth, Axel. Op. cit. p. 81.




[iii]     Honneth, Axel. Op. cit. p. 82-83.




[iv]    Honneth, Axel. Op. cit. p. 88.




[v]     A questão é procedida em tema por Victor Ferreres Comella ao tratar de limites entre a Constituição detalhada e a Constituição abstrata, considerando que há conteúdos de elaboração política e moral presentes em norma jurídica, vindo a tornar não justificada sua incorporação a órgãos institucionais judiciais como “aqueles que são aptos” a lhe conferir sentidos: “Sin duda, cuando las disposiciones constitucionales están formuladas en términos relativamente específicos, o incorporan algún concepto técnico (como ‘flagrante delito’ o ‘habeas corpus’), es possible argumentar que los jueces constitucionales aplican una ‘razón artificial’, la del Derecho, que sólo elles (y el resto de la profesión) domina suficientemente, sin sugerir con ello que esos jueces tengan mayor capacidad que los representantes políticos del pueblo para ejercitar su ‘razón natural’. Pero, ¿qué ocurre cuando la disposición constitucional exige a las leyes que respeten la ‘justicia’, o la ‘dignidad hunana’, o la ‘liberdad’, o la ‘igualdad’? Retórica aparte, ¿cómo puede distinguirse entonces el razonamiento del juez constitucional del que desarrolla un ciudadano con un mínimo de sensibilidad moral cuando discute con otro acerca de la misma cuestión controvertida?” (Comella, Victor Ferreres. Justicia Constitucional y Democracia. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2012, p. 95)






Marcelo KokkeMestre e Doutorando em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Pós-graduado em Processo Constitucional. Procurador Federal – Advocacia-Geral da União. Procurador-Chefe da Procuradoria junto ao IBAMA-MG. Professor da Escola Superior Dom Helder Câmara.



http://www.paroquiasantoafonso.org.br/?p=14042

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