Padre Geovane Saraiva*
Ser pobre e despojado é procurar imitar o Salvador da humanidade, o
Senhor Jesus Cristo, que nada teve, a não ser uma única túnica; ele que foi
objeto de escárnio da parte dos que o assassinaram. As raposas têm tocas, as
aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde inclinar sua cabeça (Mt
8, 22). Francisco de Assis e o Irmão Universal Charles de Foucauld amaram em
profundidade a Senhora Pobreza, que Cristo a inaugurou, ao nascer numa
estribaria e, ao morrer semelhante a um malfeitor, sedento, desfigurado e
despido.
O Papa João
XXIII, "Il Papa buono", como era conhecido pelo povo Italiano, teve
na sua grande bondade, a bela e maravilhosa inspiração de iniciar uma nova era
na Igreja, era de uma Igreja mais povo de Deus, mais servidora e pobre, que se
adaptasse às necessidades do nosso tempo e fortalecesse tudo aquilo que pudesse
contribuir para chamar todos ao seio da Igreja. Tudo isso se deu na Igreja com
a convocação e realização do Concílio Vaticano II (1962 -1965).
No Ceará tivemos a sorte de contar
com Dom José de Medeiros Delgado, um paraibano de personalidade e formação
sólida, de uma cultura invejável, que compreendeu e assimilou o Concílio
Vaticano II em toda sua plenitude, sonhando com uma Igreja rejuvenescida,
renovada, o "aggiornamento". O mais exigente e a grande arte para Dom
Delgado foi viver essa transição, fazer acontecer e levar o clero e o povo a
uma compreensão do mundo, com suas exigências e que todos tinham a missão de
construir a sua própria história. Neste sentido, seu gesto de pastor foi
segundo o coração do Pai (cf. Jr 3, 15), grandioso e extraordinário.
Prestes a
encerrar o Concílio Vaticano II, maior acontecimento eclesial do Século XX,
quarenta padres conciliares redigiram e assinaram um documento, dentre os quais
uma boa parte de bispos da América Latina, no dia 16 de novembro de 1965,
firmando no final da Celebração Eucarística na Catacumba de Santa Domitila um
Pacto – foi o "Pacto das Catacumbas".
Dom Helder
Câmara, Dom José Mota Albuquerque, Dom Antônio Batista Fragoso, Dom Fernando
Gomes e Dom José de Medeiros Delgado estavam à frente desse pacto, que foi
consequente, influenciando e fazendo florescer tantas coisas belas e
maravilhosas na nossa Igreja, da América Latina, do Brasil e do mundo inteiro.
Comprometeram-se
os nossos queridos pastores em levar uma vida de pobreza, de rejeitar todos os
símbolos ou privilégios do poder, de colocar os pobres no centro da sua ação
evangelizadora e ministério pastoral. Outra coisa presente no pacto das
catacumbas foi princípio da colegialidade e co-responsabilidade na Igreja povo
de Deus, e ainda, a abertura para o mundo que se transformava e a colhida
solidária fraterna. [...].
Dom Helder
procurou viver rigorosamente a mística do pacto das catacumbas, despojando-se
de tudo que pudesse transparecer uma Igreja com estrutura pesada e burguesa,
abraçando a simplicidade e a pobreza, indo ao encontro da profecia, sendo a voz
dos pobres e dos que não podiam falar, nos duros anos do arbítrio – a voz dos
"sem voz e sem vez". O compromisso do pastor dos empobrecidos foi um
insulto para muitos, mesmo dentro da própria hierarquia da Igreja, mas não para
aquele que tinha na mente e no coração a colegialidade e a co-responsabilidade,
Dom José de Medeiros Delgado.
Esse grande bispo
foi corajoso e não teve medo de colocar seu cargo de Arcebispo de Fortaleza,
bem como sua dignidade, sabedoria e boa vontade a serviço dos sofredores de seu
tempo, sendo fiel ao pacto firmado, concretamente solidarizando-se com Dom
Helder e outros irmãos perseguidos. Dom Delgado foi um pastor extremamente
aberto e coerente com as decisões conciliares e assim se pronunciou: A Imprensa
brasileira vem desencadeando uma intensa campanha contra a pessoa de D. Helder
Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife. [...] (cf. Artigo de Márcio de S. Porto,
o Peregrino da Paz, Pg. 73).
Dom Delgado foi o
terceiro Arcebispo de Fortaleza, ficou à frente de nossa Igreja por 10 anos, de
1963 a 1973. Não foi fácil para ele assumir o período da transição, mas como um
homem aberta às novidades de seu tempo e, ao mesmo tempo, com sua profunda
sensibilidade humanitário, sonhava e desejava obstinadamente ver acontecer e
funcionar as resoluções de uma Igreja que se abria para o mundo e se voltava
para criatura humana, imagem e semelhança de Deus (Gn, 1,26), uma Igreja
comunhão e participação.
*Padre da Arquidiocese de Fortaleza, Escritor, Membro da
Academia de Letras dos Municípios do Estado Ceará (ALMECE), da Academia Metropolitana
de Letras de Fortaleza e Vice-Presidente da Previdência Sacerdotal.
Pároco de Santo Afonso
geovanesaraiva@gmail.com
Autor
dos livros:
“O peregrino da Paz” e “Nascido Para as Coisas Maiores” (centenário de
Dom Helder Câmara);
“A Ternura de um Pastor” - 2ª Edição (homenagem ao Cardeal Lorscheider);
“A Esperança Tem Nome” (espiritualidade e compromisso);
"Dom Helder: sonhos e utopias" (o pastor dos empobrecidos).
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