14/12/2012

Um Van Gogh menos louco


UMA DAS MIL FACES Van Gogh (1853-1890) em Autorretrato com chapéu de palha, óleo sobre tela de 1887 (Foto: Van Gogh Museum Amsterdam)"Há algo na maneira como ele fala que leva as pessoas a amá-lo ou a odiá-lo”, escreveu Theo van Gogh, ainda jovem, sobre seu irmão. “Ele não poupa ninguém.” De rosto fino, olhos azuis desconfiados e os cabelos vermelhos como labareda, Vincent, o filho mais velho de seis irmãos, era uma figura estranha na principal família de protestantes da cidade holandesa de Zundert – os Van Goghs. Quieto e retraído, o garoto tinha explosões repentinas. Brigava com a mãe, fugia de casa e preferia ficar só. Era o prenúncio de uma personalidade que se manteria a vida toda, como mostra a biografia Van Gogh: a vida (Companhia das Letras, 1.095 páginas, R$ 79,50), dos escritores americanos Steven Naifeh e Gregory White, lançada agora no Brasil.
Destaque na Europa e nos Estados Unidos desde seu lançamento, em 2011, a obra é fruto de mais de dez anos de pesquisa por milhares de documentos sobre a vida de Van Gogh. Aproveitando-se da obsessão da família por cartas, os autores detalham e lançam luz sobre diversos fatos sobre sua vida e sua morte.
Para eles, a causa pode não ter sido suicídio, como sugere a difundida imagem do artista atormentado. “O mais provável é que a causa da morte tinha sido um disparo acidental”, disse Naifeh a ÉPOCA. Segundo ele, a hipótese tem como base as falhas na teoria original. Ela afirma que Van Gogh atirara no próprio abdome num campo de trigo e depois caminhara por 6,5 quilômetros até a pousada Ravoux, onde se hospedava. “Parece improvável que, ferido, ele tenha andado tanto”, diz Naifeh. Segundo ele, os médicos alegaram que o disparo fora feito à distância, sem uma trajetória direta.

Como a arma do crime e outras evidências nunca foram encontradas, o incidente ficou sem explicação. Diante de um Van Gogh deprimido e sujeito a crises, a hipótese de suicídio cresceu. Mais tarde, com o romance Sede de viver (1934), de Irving Stone, e o filme do mesmo nome (1956), passou a verdade estabelecida.

Os biógrafos contrapõem a essa suposição a criação calvinista de Van Gogh. Sustentam que ele jamais se mataria. Van Gogh referia-se a suicídio como “covardia moral”. A tese deles é que o disparo tenha ocorrido após uma briga entre Van Gogh e René Secrétan, um estudante de 16 anos, a cerca de 1,5 quilômetro da pousada. Secrétan andava disfarçado de caubói e munido de um revólver que usava para caçar, emprestado por Gustave Ravoux, o dono da pousada – o mesmo que espalhou a notícia de suicídio. Ele era conhecido por zombar de Van Gogh, que, bêbado, pode ter reagido.
A teoria é tida como sólida por muitos criminólogos e grande parte da comunidade de história da arte. “É uma interpretação intrigante”, disse a ÉPOCA Leo Jansen, curador do Museu Van Gogh, em Amsterdã. “Mas há muitas questões baseadas em suposição. Seria prematuro desconsiderar suicídio como causa da morte.”
A biografia também busca desmistificar a célebre história do decepamento da orelha de Van Gogh, em 1888. Os autores negam que ele tenha se mutilado para demonstrar amor a uma prostituta que disputava com o pintor francês Paul Gauguin (1848-1903). Segundo eles, a mutilação se consumou devido ao medo da solidão de Van Gogh. Ele se sentia abandonado por Theo, seu irmão e fiel amigo, prestes a se casar. Ao mesmo tempo, via Gauguin, com quem dividia uma casa em Arles, na França, obter sucesso com suas pinturas. Ficava enciumado. Numa briga catastrófica, no Natal daquele ano, Gauguin disse que iria embora da casa. Desesperado, Van Gogh quis se punir e mostrar a Gauguin que estava arrependido. Arrancou a orelha em mais de um golpe, enrolou-a em papéis e foi à procura de Gauguin. Acreditando que ele estava no bordel e não queria atendê-lo, entregou a orelha à prostituta favorita do amigo.
Esses e tantos outros detalhes pessoais ajudam, segundo Naifeh, a compreender a arte de Van Gogh. “Se não entendermos quão difícil foi a vida de Van Gogh – e a automutilação é uma evidência disso –, não podemos entender o triunfo de sua determinação”, diz Naifeh. Em vida, Van Gogh costumava dizer que era impossível dissociar suas obras de sua trajetória. Influenciado pelo romancista francês Émile Zola, fundador da escola naturalista, defendia a “arte de carne e osso”. Nela, os quadros eram tão importantes quanto a vida do pintor. “O que minha arte é, sou também”, escreveu no fim da vida.

Além das descobertas, a principal característica do livro é destacar o extremo sofrimento e as humilhações que Van Gogh teve de superar para produzir sua arte. Suas obras foram rejeitadas e ridicularizadas até os últimos anos de sua vida. Sua mãe uma vez as chamou de “ridículas”. Os outros parentes, à exceção de Theo, o único que permaneceu ao lado de Van Gogh, costumavam esconder as pinturas em sótãos e armários velhos. Eram tidas como “obras de louco”. Para Theo, a principal característica do irmão era ter um “coração fanático”. Pintava e vivia com uma paixão vulcânica. Mais direto, Van Gogh dizia que tudo o que fazia era uma “arte de redenção aos desesperados”. Hoje, 122 anos depois de sua morte, o mundo parece ter se rendido a seu talento – e a seus mistérios. 

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