A conversa com a blogueira cubana Yoani Sánchez, de 37 anos, começa com uma brincadeira: “Aqui posso falar tranquila, não?” Depois de cinco anos de frustrados pedidos ao governo comunista para viajar ao exterior, Yoani escolheu o Brasil para iniciar seu giro de cerca de 80 dias por mais de dez países da América Latina e Europa. Na estada de uma semana por aqui, foi hostilizada diversas vezes por manifestantes de grupos de esquerda, que tentaram impedi-la de falar ou responder as suas perguntas. A exibição de um documentário em que é o tópico central, em Feira de Santana, Bahia, e o relançamento de seu livro De Cuba, com carinho (Editora Contexto), em São Paulo, foram interrompidos por causa da balbúrdia. A ÉPOCA, Yoani cobrou uma investigação sobre esses episódios e disse suspeitar da influência direta do regime cubano na organização dos protestos. Ela falou também sobre seu futuro numa possível Cuba democrática e por que não sonha ser presidente de seu país. “Falta-me cinismo para a política.” Mas também falou de temas amenos, como seu longuíssimo cabelo, que definiu como "livre e selvagem como eu".
ÉPOCA – Que mensagem a senhora pensava em trazer ao Brasil? Conseguiu transmiti-la?
Yoani Sánchez – Uma mensagem de esperança. A sociedade civil em Cuba está alcançando uma maturidade que vale a pena mostrar ao mundo. É uma Cuba plural, porque às vezes os estereótipos nos fazem parecer uma ilha verde-oliva (referência à cor dos uniformes militares). Queria dizer ao Brasil: “Somos tão plurais e diversos como vocês, só precisamos de um marco legal para expressar essa pluralidade.” Acho que consegui colocar minha voz, apesar de ter sido interrompida muitas vezes.
ÉPOCA– E por que o Brasil como primeiro destino?
Yoani – Porque gosto de ser desafiada (risos). Durante os anos em que me foi negado sair de Cuba, vieram do Brasil as maiores manifestações de apoio, inclusive nos momentos em que já tinha perdido as esperanças. Tinha de vir ao Brasil primeiro para receber o abraço dessas pessoas.
ÉPOCA– Não é irônico o fato de que este mesmo Brasil que apoiou tanto sua vinda também a hostilizou?
Yoani – Nunca pensei em encontrar um país homogêneo racial, cultural ou religiosamente, muito menos ideologicamente. Não esperava um país em que todos pensassem igual.
ÉPOCA– Mas a senhora imaginava ser recebida como foi?
Yoani – Imaginava. Dias antes de viajar, vários blogs oficialistas de Cuba, quase sempre anônimos, já advertiam que me dariam uma resposta contundente no Brasil. Talvez para vocês seja algo pouco comum alguém ser impedido de falar num evento público, mas para mim não é. Desde pequena, testemunho manifestações de ódio em Cuba. Me dá um pouco de pena dessas pessoas (os manifestantes brasileiros). Elas têm muito poucos argumentos. Estava muito aberta ao debate, mas o que encontrei do outro lado foi o extremismo, com gritos e palavras de ordem. Foi um ódio excessivo. Muitos deles nem sequer me conheciam ou leram meus textos. Repetem clichês que não se ajustam à realidade.
ÉPOCA - E a sensação de ter sido escoltada pela Polícia Legislativa no caminho para a Câmara dos Deputados?
Yoani - Foi a primeira vez que passei por isso. E ocorreu com uma cidadã pequenininha, que não tem nenhuma importância, como o governo cubano diz. É paradoxal. Se não sou nada importante, por que me proteger tanto? Estamos falando de uma pessoa que nunca militou por nenhum grupo político, nunca agrediu ou matou ninguém, mas apenas põe suas ideias em um blog. É realmente sintomático, como prova da força que tem a palavra.
ÉPOCA – Alguns manifestantes eram ligados ao PT, o partido da presidente Dilma Rousseff. O governo brasileiro deveria emitir uma posição sobre esse episódio?
Yoani – Quero evitar me envolver em temas partidários ou sugerir aos brasileiros o que têm de fazer. Mas não há dúvida de que os fatos ocorridos deveriam ser investigados. Os militantes do PT precisam de uma explicação sobre por que alguns colegas impediram atos como a exibição de um filme ou o lançamento de um livro. Se eu militasse num partido e ocorresse algo assim, pediria explicações. Vale a pena investigar, porque não acho que as razões sejam apenas o rechaço a meus textos. Evidentemente, havia alguém atiçando os ódios. É preciso saber quem, o quê, a que distância e de onde é essa entidade que está fazendo isso.
ÉPOCA– Quem é essa entidade?
Yoani – Não tenho nenhuma prova. Mas tudo tem o signo muito marcante do tipo de ação que faz o governo do meu país contra os dissidentes.
ÉPOCA– Seria alguma iniciativa da embaixada de Cuba no Brasil?
Yoani – Como disse, não tenho provas, mas não acharia estranho. Em Feira de Santana, todos os manifestantes tinham o mesmo documento, impresso da mesma forma. É claramente um sinal de que alguém lhes entregou. E os pontos desse documento se parecem assombrosamente com aqueles com que o oficialismo me ataca.
ÉPOCA– Que pontos?
Yoani – Meu suposto vínculo com a CIA, que já é quase uma piada. Outro são os questionamentos sobre o sequestro que sofri em 2009 (ela afirma ter sido agredida e levada de carro por agentes do governo). É o mesmo roteiro de ataques que costumo receber em Cuba. Já estou acostumada a isso e não me traz danos emocionais, mas me incomoda não me darem o direito de me explicar. Sou uma pessoa da palavra. Essas perguntas são feitas para que eu não as responda. São para me difamar.
ÉPOCA– Um militante disse num debate na TV que não houve coerção em Feira de Santana porque não houve violência física. O que a senhora acha desse raciocínio?
Yoani – Em minha chegada ao Brasil, no aeroporto do Recife, uma pessoa chegou a puxar meu cabelo. Em Feira de Santana não houve violência física contra mim, graças à intervenção dos organizadores, que me cercaram e me colocaram numa sala até que os ânimos serenassem. Mas o clima ali era de linchamento. A questão não é se houve agressão ou não. Impediram uma pessoa de se expressar. Isso, sim, é coerção, algo muito autoritário. Escutar o outro é um princípio básico da democracia e da convivência pacífica. A lógica foi: “Não estou de acordo com você. Cale-se”.
ÉPOCA – Tanto ativistas da esquerda como parlamentares de partidos da oposição se aproveitaram sua figura para defender seus interesses. Isso a incomoda?
Yoani – Não. A vida é aproveitar-se do outro. O governo de Cuba se aproveita de mim para dizer ao mundo que há uma democracia, porque Yoani Sánchez pode escrever em seu blog. Prefiro a manipulação por dizer algo do que por não dizer nada. Se minha opinião serve a alguém, podem tomar minhas palavras sem problema. Sou open source, dou licença gratuita para todos. O que não faço é me alinhar ao pensamento de um partido. Na saída da Câmara, um jornalista me perguntou se eu sabia que alguns deputados que me receberam eram muito conservadoras em temas como o casamento gay. Fui madrinha do primeiro casal gay de Cuba, mas uma das minhas filosofias de vida é a transversalidade. Quero ter contato com todas as forças políticas. Sou uma pessoa de conciliação. Não houve mais gente do PT na Câmara porque não quiseram ir. O embaixador cubano (Carlos Zamora) também foi convidado, mas não foi.
ÉPOCA - Sua visita mudará o “silêncio cúmplice” do Brasil ante a ditadura cubana, usando um termo que a senhora escreveu em seu blog?
Yoani - Não quero ter a pretensão de pensar que a simples vinda de uma cidadã a um país enorme como o Brasil mudará a política externa. Mas todas as pessoas que me encontraram nas ruas por aqui me trataram com muito carinho e palavras de estímulo: “Siga”, “resista”, “leio seu blog”, “abaixo a ditadura”. Fora os extremistas que desejam sustentar um cenário utópico de Cuba, tenho a sensação de que o povo brasileiro sabe que Cuba é um Estado sem direitos para os cidadãos. Se um povo começa a mudar sua opinião sobre um assunto de fora, a política exterior terá que mudar um dia.
ÉPOCA– A senhora ficou conhecida por lutar pelo seu direito de viajar ao exterior. Isso conseguido, seu discurso será mais concentrado agora na queda do regime? Quais são seus próximos passos?
Yoani – Creio na evolução. Não posso ser a mesma Yoani de 2007 (ano em que lançou o blog Generación Y). Pretendo abrir um jornal em Cuba com os recursos que conseguirei levantar nas viagens por vários países. Ainda não é possível de maneira legal, mas tratarei de achar brechas para conseguir. Não abandonarei o blog, que é minha terapia particular. Mas claro que preciso mudar o discurso, não ficar somente na denúncia, mas sim propor soluções. Minha proposta principal se resume a despenalizar a dissidência. Cobrar que o governo tenha o compromisso de que nenhum cidadão será punido por expressar qualquer ideia. Conheço muitos economistas, sociólogos, gente que quer ajudar a melhorar o país, mas tem medo de passar pela mesma situação de Yoani Sánchez ou dos prisioneiros da Primavera Negra (como ficou conhecido o movimento de repressão do regime em 2003, que resultou na prisão de 75 pessoas). Se houver isso, as propostas aflorarão.
ÉPOCA– A ditadura não durará para sempre, e um dia haverá eleições livres em Cuba. A senhora pensa em se candidatar à Presidência quando isso ocorrer?
Yoani – Não tenho a menor vontade. Quando uma figura se destaca em Cuba, nos acostumamos a depositar nela todos os desejos de mudança, quase como uma entidade messiânica. Isso nos fez entregar nosso destino nas mãos de Fidel Castro. Não gostaria que isso se repetisse na Cuba do futuro. Prefiro que o governante do país com que sonho seja um administrador sem nenhum carisma, que não tenha a auréola do salvador da pátria. Não tenho intenção de me candidatar porque tenho uma responsabilidade maior como jornalista. Quero ser incômoda para este governo e para o próximo. Tenho tanto a fazer que não dá para embarcar em uma carreira política.
ÉPOCA – Mas seus admiradores no exterior esperam por isso...
Yoani - Muita gente já me abordou sobre isso, sim, mas nunca estive interessada. Não é que digo “não” agora e “sim” depois. Falta-me cinismo para a política. Eu seria um desastre. Nas primeiras duas semanas, diria tudo tão honestamente que isso me causaria todos os problemas do mundo. Que outros se ocupem da política com minúscula. Vou me preocupar com a política com maiúscula.
ÉPOCA - A senhora se incomoda de não ser muito conhecida em Cuba?
Yoani - Não sou a pessoa indicada para falar disso, pois pareceria um ato de imodéstia. Mas cada vez que saio às ruas do meu país, seja em Havana ou em um pequeno povoado, muita gente me reconhece. Como? Pela forma como a informação se difunde em Cuba. Há o fenômeno das antenas parabólicas ilegais, que transmitem emissoras da Flórida, do México, onde veiculam reportagens sobre mim. Mas minha intenção não é ser conhecida. Não sou política, não busco apoio popular. A fama é efeito colateral, não resultado do meu trabalho. Não sou uma pop star nem quero competir em popularidade com as novelas brasileiras, transmitidas três vezes por noite na televisão cubana. Sobre eu não ser conhecida, é preciso ir a Cuba e perguntar.
ÉPOCA - Sobre as novelas brasileiras, a senhora já escreveu que elas têm uma influência grande na população ao mostrar situações em que um personagem sai da miséria e realiza seus sonhos. As novelas daqui já fizeram mais que nosso governo para despertar a consciência do povo cubano?
Yoani - Acho que são melhores embaixadoras da liberdade. Mas as novelas têm um duplo papel contraditório. Se por um lado trazem informação e oxigênio para mostrar aos cubanos que há outras realidades e não somos o paraíso, por outro funciona como um sonífero. Muita gente compra caixas com novelas inteiras no mercado informal e fica o dia inteiro na frente da TV.
ÉPOCA - A senhora disse que “falta dureza” do Brasil quanto aos direitos humanos em Cuba. Essa é questão mais delicada envolvendo a relação dos dois países?
Yoani - O governo brasileiro encampou a luta contra o embargo americano a Cuba, mas nosso maior problema não é o conflito entre Cuba e Estados Unidos, mas o conflito Cuba e seus cidadãos. Recomendaria, muito humildemente, complementar a política externa para Cuba com a questão da ausência de liberdade de expressão, de associação. Senão, parece apenas um assunto de xadrez político. Se estão pressionando pelo fim do embargo, muito bem, mas por que não pressionar pelo fim do bloqueio que o governo impõe a nós mesmos?
ÉPOCA - Que impressão a senhora levará do Brasil?
Yoani - Fabuloso. Encontrei muita pluralidade. Confirmei a frase que um amigo me disse: “Os brasileiros são como os cubanos, mas livres. Todos os rostos que vi me lembram os de Cuba, e também a gestualidade. Mas, ao falar com os brasileiros, me espantei com a naturalidade com que falavam de temas políticos. No aeroporto do Recife, fiquei em um escritório à espera do carro para me levar dali porque os manifestantes poderiam bloquear minha passagem. Ali, uma controladora de voo falou de corrupção e falta de transparência no Brasil de uma forma que seria impensável em Cuba. Lá, nós murmuramos. Se vamos falar de Fidel Castro em local público, fazemos um gesto de alguém barbudo. Se o assunto é Raúl Castro, puxamos os olhos, por causa de seus traços achinesados. Ninguém fala em voz alta de política.
ÉPOCA - As pessoas no Brasil estão falando sobre seu cabelo. Li um post antigo no seu blog sobre o fato de que sua irmã ria da senhora por causa do seu “cabelo de brasileira”, pois parecia com a da cantora Maria Bethânia.
Yoani - Sim. Quando era menina, minha mãe dizia meio de brincadeira, meio sério. Era a época em Cuba, no início dos anos 80, que se ouvia muito a música brasileira, como Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento. Me parecia muito bonito os cabelos que eles tinham, um cabelo livre. Deixo crescer meu cabelo, que é bastante selvagem. Mas não há uma razão especial. Já tive todos os tipos possíveis de cabelo. Uma vez tive o cabelo raspado, durante dois anos da minha vida.
ÉPOCA - Quando?
Yoani - De 1992 a 1994.
ÉPOCA - Mas por quê?
Yoani - Bom, primeiro porque era a época de Sinéad O’Connor (cantora irlandesa que tinha o cabelo raspado) e estava na moda. Mas também naqueles anos em Cuba havia uma crise material, econômica e financeira tão forte que comprar xampu ou conseguir xampu para o cabelo era quase impossível. Sob essa condição de colapso material, surgiram por todos os lados muitas epidemias de piolho. Bom, então decidi raspar o cabelo para evitar todos esses problemas, a compra de xampu e a aplicação (de remédios) para os piolhos. Foi muito difícil, porque na rua as pessoas gritavam muitas coisas para mim.
ÉPOCA - O quê, por exemplo?
Yoani - Me chamavam de lésbica. Porque era uma época que em Cuba não estavam acostumados com o cabelo raspado. Me agrediam muito verbalmente. E um belo dia deixei o cabelo crescer e...
ÉPOCA - Aqui perguntam “por que ela não corta o cabelo”?
Yoani - Já me perguntaram se eu tinha uma promessa... Não, não é isso. Ele é livre e selvagem como eu. Não há cuidados especiais. Não me penteio muito. Não me maquio. Não tenho tempo para isso. Não pinto as unhas. Ele (o cabelo) está aí e tem seu espaço. Eu tenho o meu. Nós nos respeitamos (risos).
ÉPOCA - A senhora não é uma pessoa muito vaidosa, neste sentido?
Yoani - A minha vaidade se reflete em outra coisa. Mais que a vaidade física, não passo minha vida vendo as coisas que não escolhi, compreende? São coisas que não selecionei para a minha vida. Uma é o meu corpo. Veio assim...
Revista Época
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