04/03/2013

A busca da sintonia com a voz de Deus


LONGO DEBATE Ilustração do conclave do papa Pio X (1903), na Capela Sistina,  no Vaticano. A eleição papal é o processo de escolha de líderes mais tradicional da humanidade (Foto: Leemage/UIG via Getty Images)O papa Bento XVI decidiu que seu sucessor passará por uma eleição mais rigorosa do que ele próprio enfrentou. Em 2007, ele acabou com uma regra adotada por seu antecessor, João Paulo II, segundo a qual os papas poderiam ser eleitos por maioria simples dos votos dos cardeais (metade dos eleitores mais um) após 34 rodadas sem nenhum nome com o apoio de dois terços do conclave. O sucessor de Bento XVI terá necessariamente de ter dois terços dos votos – não importa o número de sessões necessárias para a obtenção dessa proporção conhecida como maioria qualificada. “Parece que o papa quer assegurar a seu sucessor o maior consenso possível”, disse Federico Lombardi, porta-voz do Vaticano, em resposta ao estranhamento que o decreto então causou. Eleito sob as regras de João Paulo II, Bento XVI foi escolhido já na quarta rodada – o segundo conclave mais rápido no último século. O sucesso na eleição não se repetiu no pontificado. Bento XVI renunciou no último dia 11, após oito anos de intrigas no alto escalão, escândalos mal resolvidos e vazamentos de documentos sigilosos. Aparentemente convencido de que a vitória fácil ajudou a tornar a administração difícil, ele resolveu ajustar a fórmula da futura eleição.

A mudança nas regras da escolha do sucessor de Bento XVI faz parte da longa história de aperfeiçoamentos da eleição papal, a escolha de autoridades mais tradicional da humanidade. Sem a sucessão hereditária, típica das monarquias tradicionais, a Igreja Católica, ao longo de 2 mil anos, desenvolveu formas de chegar ao consenso e registrá-lo de forma incontestável. O aprendizado da Igreja na busca de precisão, qualidade e celeridade na escolha dos papas refinou mecanismos que são aproveitados hoje pelas democracias modernas, como a maioria qualificada ou o voto secreto. “A Igreja evitou a transmissão de poder por parentesco”, afirma Frederic Baumgartner, autor do estudo Criando as regras para a eleição papal moderna. “Eleger o sucessor pareceu razoável, e o tempo confirmou o acerto dessa opção.”


A frase “a voz do povo é a voz de Deus” não foi criada pela Igreja Católica, mas lhe serviu como norte. Para os fiéis, é o Espírito Santo que se manifesta na escolha papal. Segundo a Bíblia, Jesus apontou Pedro como o primeiro papa, ao entregar a ele as chaves dos céus. Não há registro, porém, de que ele tenha deixado instruções para as escolhas seguintes. No início, o papa passou a ser escolhido por aclamação dos católicos. Em praça pública, eles manifestavam seu apoio, como numa torcida, e um grupo de clérigos apontava o vencedor. Na vigência desse método de eleição, no ano 236, Fabiano, um fazendeiro, foi a Roma assistir à votação. Um pombo pousou em sua cabeça, e ele foi eleito papa. O modelo de eleição aberta ao público mostrou suas limitações no ano 366, na sucessão do papa Libério. Dois grupos adversários entraram em conflito, em que morreram centenas de pessoas. Um dos candidatos não aceitou a derrota e atuou, por um ano, como antipapa – líder dissidente de um bloco da Igreja que podia, eventualmente, assumir o trono na ausência do titular (houve pelo menos 37 antipapas entre 217 e 1439).

Em evolução há 2 mil anos,
a eleição papal desenvolveu fórmulas sofisticadas
de debate político 
Em 366, a incapacidade de apontar com clareza o novo papa custou a autonomia da Igreja Católica. O conflito só foi resolvido com a intervenção do imperador romano, a quem coube, do século IV ao século XII, arbitrar ou decidir as eleições papais. A Igreja só recobrou sua independência com o enfraquecimento do Império Romano. Em 1179, o papa Alexandre III impôs a regra da maioria qualificada de dois terços do colegiado de cardeais para caracterizar o vencedor de uma votação. A exigência de maioria qualificada foi essencial para a eleição papal avançar em precisão e qualidade de escolha. Em 1458, o papa Pio II, ao falar da regra, disse o seguinte: “O que é decidido por dois terços do colégio sagrado é certamente decidido pelo Espírito Santo, e a isso não devemos resistir”. Estudos recentes comprovam a felicidade dessa regra, adotada aparentemente apenas de forma empírica. Em 1988, os economistas Andrew Caplin e Barry Nabeluff provaram, matematicamente, que 64%, fração praticamente igual a dois terços, é uma maioria estável. Não importa quantos grupos de interesse haja no colégio eleitoral ou de quantas formas possam se reagrupar: uma aprovação por 64% é robusta e incontestável. A maioria qualificada de dois terços é um instrumento usual de vários parlamentos no mundo – inclusive o Congresso brasileiro – em votações consideradas mais importantes.

A exigência de aprovação qualificada tornou as eleições papais mais demoradas. Entre 1216 e 1268, seis delas levaram meses para ser concluídas. Para evitar longas vacâncias, Gregório X, em 1274, decretou que só poderia votar quem estivesse presente e que a eleição ocorreria num lugar sem influências


externas, trancado com chave – daí a palavra “conclave”. Trancados, os cardeais não podiam sair antes de entrar em acordo. Recebiam comida por uma janela. Após nove dias de impasse, a refeição era limitada a pão, água e vinho. No conclave de 1287, seis cardeais morreram. No conclave de 1417, que pôs fim ao grande cisma do Ocidente (período em que a Igreja teve um papa em Roma e dois antipapas em Pisa, na Itália, e em Avignon, na França), consolidaram-se as linhas gerais das regras seguidas nas eleições papais: a participação de cardeais do mundo inteiro, que votam em seus pares, em lugar fechado, até que apareça o candidato com aprovação de dois terços do colegiado. Também em 1417 registrou-se, pela primeira vez, o uso de sinais de fumaça para anunciar a escolha do novo pontífice. No papado de Gregório XV (1621-1623), adotou-se o voto secreto, a fim de proteger o eleitor contra a pressão de seus pares e contra retaliações do vencedor aos que não o apoiaram.


Ao acabar com a possibilidade de um papa ser eleito por maioria simples, Bento XVI certamente não quer a volta das condições insalubres do passado (os conclaves recentes limitaram o número de votações a quatro por dia, para dar descanso aos cardeais), mas sim estimular a negociação política. É raro haver, no eleitorado, um grupo dono de dois terços dos votos, capaz de se impor e ignorar os demais. Para vencer, um bloco precisa conquistar o apoio – e os votos – de outros. Eleições com maioria qualificada reproduzem situações estudadas pela Teoria dos Jogos, como o “dilema do prisioneiro”, formalizado por Albert Tucker, e o “equilíbrio de Nash”, de John Nash. Os dois mostraram, por modelos matemáticos, que, se vários participantes buscarem a melhor opção para si, sairão perdendo. Em nome da melhor opção para o grupo, as partes devem encontrar um denominador comum. Antes disso, em 1785, o Marquês de Condorcet demonstrara matematicamente que decisões de um júri, aprovadas por maioria qualificada, têm maior chance de estar certas do que a decisão de um juiz. No mundo político, essa noção foi resumida com ironia pelo primeiro-ministro britânico Winston Churchill: “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras”.

O caminho da conciliação na igreja (Foto: reprodução/Revista ÉPOCA)
A busca pelo consenso torna as eleições papais imprevisíveis. No conclave de 1922, o cardeal Ambrogio Ratti demorou 11 rodadas até liderar a disputa (leia o quadro acima). De virada, tornou-se o papa Pio XI. Em 2003, num estudo sobre os conclaves, o economista americano J. Toman classificou os votos das eleições papais em “sinceros” e “estratégicos”. Votos estratégicos se assemelham ao que, nas eleições brasileiras, chamamos de voto útil: quando o candidato ideal parece ter poucas chances de vitória, os cardeais, como nós, descarregam votos no que consideram o mais razoável entre os favoritos. Pio XI foi eleito com 79% de votos estratégicos. João Paulo II, outro azarão, teve 83% de votos estratégicos.

O conclave com maioria qualificada inspirou, na Itália, um ditado popular: “Quem entra papa sai cardeal”. O favorito, que normalmente venceria numa eleição por aclamação ou maioria simples, raramente consegue. Esse ditado é tão mais verdadeiro quanto mais rodadas de votação com maioria qualificada a eleição tiver. Ao abrir a possibilidade de discussões sem prazo para acabar, na próxima eleição, Bento XVI favorece a escolha de um azarão. Logo ele, que, contrariando o ditado, entrou papa e saiu papa. 
  
Revista Época

Nenhum comentário :

Postar um comentário