16/03/2013

Inez Figueredo: venturas, aventuras, escrituras


Palmilhando, com dom e sensibilidade, a poesia, o conto e a crônica, Ignez Figueredo é possuidora de um singular discurso

Um tempo considerável, (há mais de um ano) o livro "Palavra por aí, à ventura", de Inez Figueredo, perturbar-me o espírito e, constantemente, (leio-o com frequência) é como se me lançasse aquele desafio mítico: "Decifra-me ou devoro-te". É que percorrer as veredas de suas linhas e de seus espaços vazios (é pleno de elipses mentais) não constitui uma empreitada fácil, a que qualquer um se entregue sem correr riscos. (Texto I)

Este ensaio não visa, portanto, à ordenação da narrativa, no sentido da dissecação de suas significações, considerando-se, por um lado, a dimensão da escritura de Inez Figueredo, isto é, a questão da materialidade do signo e de suas rasuras próprias; por outro, a problemática da enunciação, ou seja, os elementos não verbais que alargam as possibilidades de leitura. Em verdade, aspira à colocação em cena dos protagonistas destes textos, que, em primeira instância, são a própria palavra, no memento em que, ante o encontro com outra, com esta estabelece vasos comunicativos, desmanchando, assim, as noções de princípio e de fim.

Título e epígrafe

Ainda em seu estado de letargia, o livro "Palavra por aí, à ventura" já chama a atenção do leitor, quando, evidentemente, este fica preso ao título; surge, então, a primeira dentre tantas indagações perplexas: a aventura da palavra consistiria em esta encontrar-se entregue à sua própria sorte?; e "por aí", quer dizer, ao léu, sem pouso e sem repouso, insetos cegos nas entranhas, ao mesmo tempo, luminosas e obscuras do texto? Empós, depara-se a epígrafe: "Serei um conto, / um poema / ou uma linha?". A esta, segue-se a assinatura, entre parênteses, "(O Texto)"; ora, este, por um processo de metonímia, é o próprio livro; desse modo, tal enunciado abre caminho para a primeira enunciação: a de um oximoro - a fragmentação das narrativas será a responsável pela unidade.

A abertura

No primeiro texto deste livro, "A paleta de Tiziano Vecellio e o Infante Dourado da América Latina", o enunciado da trama é o ritual de estados de passagem vivenciado por uma personagem: de menina à adolescente; depois, à fase adulta, para, enfim, ir ao encontro do horror da decomposição, inscrito pela velhice.

(Texto II)

A leitura

Cada uma dessas experiências tem sua fase anunciada ou encerrada por fragmentos de uma cantiga de roda, mesmo que, em alguns casos, não haja, necessariamente, o rigor da cronologia, pois o tempo é conduzido pelo fluxo e refluxo das volições, das sensações vivenciadas pela personagem. (Texto III, IV e V)

Há, ainda, a inserção de um texto noutro texto, pois uma nova narrativa se inscreve, quando o motivo passa a ser o momento em que o pintor Tiziano, "Pincéis às mãos", (p.22) entrega-se à criação do quadro "Danae". (Texto VI) Aos olhos do leitor, descortina-se a interrogação: por que uma cena - esta última da narrativa -, situada na metade do século XVI, penetra numa atmosfera contemporânea, denunciada esta por enunciados como "blusa branca de tricoline" (p. 19); "a matrícula no internato" (p.19) ? Para apontar como direção da leitura a natureza alegórica que a tudo envolve?

Talvez esteja aí uma das possíveis orientações. Existem, nas duas composições - a do texto da Autora e a do texto do pintor -, elementos recorrentes: as cores, os sons, a intensa sensualidade. Afloram, a partir daí, mais especulações: trata-se da história de uma pintura ou da pintura de uma história? E "qual o iluso, qual o ilusor"? (p.20).

Fundiram-se criador e criatura? É a pintura resultado de uma vivência? O tempo do presente tem, assim, a mesma carne do tempo do passado. Habitaria, pois, por conta da transfiguração, o pintor esses dois tempos?

Jogos intertextuais

Sendo uma das marcas substanciais da pós-modernidade, a superposição de um texto a outro, isto é, o diálogo entre as criações artísticas, é presença recorrente no discurso literário de Inez Figueredo.

Ao longo dos textos do livro "Palavra por aí, à ventura", ouvem-se quadrinhas populares, tangos, Bach, Debussy; vê-se o olhar dissimulado de Capitu; leem-se fragmentos de Kafka, de James Joyce, de Ernest Hemigway, de Espinosa; ainda: personagens são extraídas da literatura de diversas nacionalidades e épocas. Tal recurso de construção tem a função de realizar atualizações, tão necessárias a uma compreensão mais consistente da condição humana, uma vez que, na efemeridade da vida, apontam o que se eterniza em sonhos, gestos, frustrações ou glórias. Dizem, assim, do homem e de sua hora.

Trechos

TEXTO I

Bach: Air for g string. Anjos de Paul Klee sussurravam rodeando-me, instigando-me, a mim, rebelde viajante, que hesitava segui-los. Distorço-me, devagar, alongando-me suavemente, em gestos diáfanos, sutis, quase inexistentes: um braço, uma perna, o tórax; o preterido coração. As Mãos. Olhos. Seios / face latescentes, despertos, passo a passo, pelo Som. Movimento. Eis o ar. Encosto-me em seu sopro, dou-lhe a mão, e, Branca veia a latejar, como uma saia / vela enfunada, Cor abandonada pela paixão, deslizo, indo e vindo entre as folhas, os telhados, os cumulo-nimbus, os ninhos de anjos e as visões.

( "A palavra, a cor e o som - da fuga", p. 87)

TEXTO II

O eclipse quase se cumpria quando a tia levou-a à janela escancarada e disse rindo-se: - É uma menina e tem cara de milagre! Aos onze anos cortaram-lhe uma franja na testa, cobriram-lhe os joelhos salientes com uma saia de sarja azul marinho e os braços ossudos com uma blusa branca de tricoline. Pouco a pouco, a despeito da sisudez, alguns gestos, convites e segredos alcançaram-na. Na paixão das descobertas deu-se à luta; enfrentou a incoerência e empunhou o sonho. Certo dia conheceu o companheiro; no outro o desejo. Induziu-se ao termo. Impossível interpor-se à morte e ao resplendor do zênite.

(p. 19-21)

TEXTO III

Passa-me tuas asas. / passarinho, passarinho, / faz-me voar;

/ deixa-me estar; passarinho, passarinho,

/ quieta no ar (p. 20)

TEXTO IV

Leve e ligeiro, / passarinho marinheiro, / leva-me ao mar / O sete-estrelo / passarinho, marinheiro, / quero guiar. (p. 21)

TEXTO V

Rouba-me as asas, / passarinho traiçoeiro, / quero parar. / Diz-me o vento, / passarinho companheiro, / basta sonhar. (p.21)

TEXTO VI

(Pincéis às mãos, o vulto consumado pelos anos, Tiziano fiava-se na mensagem de sua angústia secreta, - na possível interpretação alegórica das mesclas das cores, dos sons, das formas, da cena, do texto. E ria-se, um sábio riso: daquela união, Ouro e Danae, Torre e Liberdade, da dissoluta e sensual atmosfera cromática Perseu haveria de nascer; Cortaria a cabeça da Medusa e fundaria uma Nova Cidade) p. 22

FIQUE POR DENTRO

Um breve retrato da artista

Inez Figueredo é uma escritora múltipla; com a mesma intimidade, cultiva a ficção e a poesia ou, ainda, os registros do cotidiano. E, em todos esses gêneros, concentra-se, antes de tudo, na tessitura da linguagem - personagem dos textos. É autora dos livros de poemas "O poeta e a ponte" (1997); e de "Estrela, vida minha" (2004). Grande parte de suas criações encontra-se publicada em antologias, revistas e jornais. Foi agraciada com os seguintes prêmios literários: União Brasileira de Escritores, UBE - 1996 - (Crônicas); Ideal Clube de Literatura - 1999 - (Crônicas); Secretaria de Cultura do Ceará - 1993 - (Contos) e VII Prêmio Ideal Clube de Literatura - Obra publicada, Poesia.

CARLOS AUGUSTO VIANAEDITOR 
Diário do Nordeste

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