24/05/2013

Jane é um gênio. Da matemática

PEÇAS NUM TABULEIRO Como na Teoria dos Jogos, os personagens, em busca de vantagens, adotam atitude favorável, desfavorável ou neutra (Foto: The Kobal Collection)O filme As patricinhas de Beverly Hills (1995) trata da vida de Cher. Patricinha, ela ajuda uma colega de escola a tornar-se popular e tenta demovê-la de um namoro, ao perceber que está apaixonada pelo mesmo rapaz. É um clássico do cine pipoca dos anos 1990, que ditou gírias e modas. É também um clássico da matemática, segundo Michael Chwe, professor de ciências políticas da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. “Eu e meus filhos estávamos assistindo ao filme, quando percebi que a história toda era uma narrativa sobre manipulação”, afirma. Chwe (pronuncia-se “tché”) viu na trama elementos da Teoria dos Jogos, campo da matemática que estuda estratégias para a tomada de decisões. Ele analisou a obra de Jane Austen (1775-1817), autora do livro Emma, que inspirou As patricinhas de Beverly Hills. Concluiu que Austen dominava a teoria, um século antes de sua formulação. Ele defende essa tese no livroJane Austen, game theorist, inédito no Brasil.


Em 230 páginas, Chwe identifica mais de 50 estratégias de manipulação nos seis romances de Austen. No livro Emma, que inspirou As patricinhas de Beverly Hills, a poderosa protagonista conclui que ajudar uma coadjuvante de pouco poder pode lhe trazer vantagem. Uma vez fortalecida, a coadjuvante passa a agir como concorrente. No final do filme, depois de muitas armações semelhantes, a protagonista Cher termina com o namorado que cobiçava, ex de Tai.


As estudantes Cher e Tai se vestem como patricinhas, mas suas estratégias dariam inveja à turma que joga xadrez na biblioteca. Austen lança mão de raciocínios que, dois séculos depois, seriam formalizados na Teoria dos Jogos. Mais do que isso: parecia entender claramente o que tinha em mãos. Em Emma, Jane escreve: “Poderia um linguista, um gramático, poderia mesmo um matemático ver o que ela havia enxergado, testemunhado a aparência deles juntos e ouvido sua história, sem sentir que as circunstâncias tinham sido peculiarmente interessantes uns aos outros? Como uma pessoa imaginativa como ela ficaria tão eufórica com a especulação e a previsão?”. Segundo Chwe, o trecho menciona elementos-chaves da Teoria dos Jogos: análise esquemática e atenção às circunstâncias interessantes que permitem a previsão. “A passagem ressalta a habilidade de antever o comportamento humano”, diz.

Jane Austen é uma aventura em território não familiar para os teóricos dos jogos "
THOMAS SCHELLING, GANHADOR 
DO PRÊMIO NOBEL EM ECONOMIA DE 2005 
A Teoria dos Jogos foi reconhecida pela comunidade científica em 1944, com o livro A Teoria dos Jogos e o comportamento econômico, do matemático John Von Neumann com o economista Oskar Morgenstern. “A teoria tenta entender como as pessoas atuam em grupo ou sociedade”, diz Maurício Bugarin, professor de economia da Universidade de Brasília. “Os jogadores têm preferências sobre os resultados possíveis, determinadas sobre os possíveis acordos em que estariam envolvidos”, afirma a economista Marilda Antonia de Oliveira Sotomayor, professora da USP. “Um jogador racional só aceitará o acordo proposto se ele se certificar de que não é possível obter termos mais favoráveis interagindo com outros jogadores.”

Por meio de equações, os estudiosos analisam os papéis e os interesses dos agentes envolvidos, a fim de prever o resultado de suas ações. Os resultados podem surpreender tanto telespectadores da Sessão da tarde quanto economistas. Inimigos podem cooperar. Amigos podem atuar uns contra os outros. A melhor escolha individual pode se revelar a pior para todos. Tudo depende da situação e dos interesses envolvidos. Usada para orientar desde a estratégia militar de países em guerra até a formação de casais felizes, em serviços de namoro-relâmpago, a Teoria dos Jogos ganhou prestígio nas últimas duas décadas. Contribuições a esse campo de conhecimento foram reconhecidas com o Prêmio Nobel de Economia em 1994, 2005 e 2012. Ganhador do Nobel de 2005, o economista Thomas Schelling gostou da provocação de Chwe. Schelling descreveu o livro sobre Jane Austen como uma aventura em território não familiar, para teóricos dos jogos, e uma elucidação das estratégias da autora, para seus – e, principalmente, suas – fãs.

ATEMPORAL Jane Austen, escritora inglesa  do século XIX.  O pragmatismo dos personagens ajuda a explicar o sucesso de sua obra (Foto: Stock Montage/Getty Images)
Ao descrever a vida como ela é, em relações permeadas de lógica, em que cada participante busca atender a seus interesses, os livros de Jane Austen são uma sofisticada aplicação literária da teoria. Uma das lições mais importantes de sua obra, diz Chwe, é: mesmo em situações difíceis e constrangedoras, é possível tomar boas decisões. No livro Mansfield Park, a protagonista Fanny Price não tem poder e é maltratada pela família adotiva. Mesmo assim, joga como estrategista. Olhando as estrelas pela janela com Edmund Bertram, por quem está interessada, Fanny propõe observar a constelação Cassiopeia. Isso os obrigaria a ficar a sós no jardim da casa. No fim, realiza seus sonhos. “Se uma garota aparentemente fraca como Fanny pode tomar as rédeas das suas escolhas, nós também podemos”, diz Chwe.

Filha de uma família humilde, na Inglaterra da Revolução Industrial, Jane Austen teve instrução formal precária. Precisou largar a escola porque seus pais não podiam pagar. Sua casa era um lugar de debates e convívio comunitário. Lá, apresentou seus primeiros trabalhos literários. Austen morreu pouco conhecida, aos 41 anos, com seis romances concluídos: Razão e sensibilidade (1811), Persuasão (1811), Northanger Abbey (1811), Orgulho e preconceito (1813), Mansfield Park (1814) e Emma (1815). Foi alçada a fenômeno cultural no último século. Seus livros viraram filmes. O conjunto da obra inspira outros trabalhos, como o filme O Clube de Leitura de Jane Austen (2007). A emissora americana CBS está produzindo uma versão de Razão e sensibilidade. Suas obras são recriadas em tom erótico, como no livro Orgulho e promiscuidade, ou como paródia, em Orgulho e preconceito e zumbis. Fãs do mundo inteiro organizam-se pela internet. A página Austen no Facebook tem mais de 700 mil seguidores. Jane Austen Brasil, uma comunidade fechada, tem 1.600 participantes. Eles marcam encontros para discutir as obras e comentar lançamentos ligados a ela. O talento em construir jogos de interesse entre seus personagens talvez ajude a explicar o sucesso duradouro de Austen. Seus personagens são regidos mais por pragmatismo que por conceitos morais de sua época, a era georgiana no Império Britânico. O pragmatismo tem regras perenes e universais. Como qualquer jogo.

Revista Época

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