Num diálogo memorável do filme Sangue negro, de 2007, o protagonista Daniel Plainview – um fictício magnata do petróleo – explica como roubara a riqueza subterrânea de um vizinho. Ao extrair o petróleo sob seu terreno, o milionário sugara também o que estava sob a área ao lado. “Não sobrou nada. Meu canudinho bebeu seu milk-shake”, diz Plainview, sadicamente, a sua vítima. A metáfora com sorvete ilustra bem a fome atual por energia. Desde o século XIX, a economia global devora combustíveis fósseis, como petróleo e gás natural, muito mais rapidamente do que eles se formam. Eis que, nos anos 1990, um magnata do petróleo da vida real, o texano George Mitchell, mudou isso. Ele descobriu como buscar o milk-shake num ponto onde as petrolíferas não procuravam.
Mitchell mostrou como extrair, com lucro, o gás combustível ainda preso em microbolhas nas rochas, inacessível às sondas e brocas comuns da indústria do petróleo. É o mesmo gás natural usado em casas, veículos e indústrias, menos poluente que o petróleo e o carvão. Em 2013, o governo brasileiro decidiu experimentar a novidade. Marcou para outubro o primeiro leilão de áreas para a explorar essa fonte de gás natural.
A rocha que prende gás e óleo recebe o nome genérico de xisto. De uma fonte de energia inexpressiva na década passada, ela hoje responde por 8% da eletricidade gerada nos Estados Unidos. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), poderá suprir 8% da necessidade global a partir de 2035. Essa fonte revolucionária de energia é alvo de duas acusações: contaminar a água e atrasar as pesquisas em fontes limpas de energia. Eis o que está em jogo:
1. Que pedra é essa?
Xisto é o nome genérico para vários tipos de rocha que se formam em lâminas. Tem interesse econômico principalmente por causa do gás natural, preso em pequenas bolhas. Como outros combustíveis fósseis, o gás existente hoje começou a se formar 300 milhões de anos atrás, a partir da decomposição de plantas e animais. Nos Estados Unidos, havia testes para extrair esse gás desde 1821, mas a operação era cara demais. Desde os anos 1990, isso mudou.
Outra forma de apresentação do mineral é o xisto betuminoso. Nesse caso, a rocha contém grande quantidade de óleo combustível, com as mesmas aplicações que o petróleo. É importante em alguns países, como o Canadá, mas tem menos importância global que o gás.
A extração combina, atualmente, duas técnicas. Uma consiste em quebrar as lâminas de rocha com disparos de água doce sob pressão. A água é misturada a produtos químicos, que mantêm as rachaduras abertas, mesmo diante do calor e da pressão das profundezas. Essa técnica se chama fratura hidráulica ou, em inglês, fracking. A segunda técnica, desenvolvida pelo texano Mitchell, é a perfuração horizontal. Ela permite varrer lateralmente a camada de xisto.
2. Onde está essa riqueza?
O xisto pode se prestar à exploração em grande parte do território brasileiro, do Acre ao Rio Grande do Sul (leia no mapa). Há extração de óleo e gás de xisto em São Mateus do Sul, noParaná. A Superintendência de Industrialização do Xisto (SIX), da Petrobras, começou a produzir em escala industrial em 1992. As áreas a ser leiloadas têm reservas maiores e mais profundas. Sua exploração acarretará maior impacto ambiental.
3. O que muda no mundo?
O maior exemplo do impacto dessa revolução está nos Estados Unidos. Os americanos reduziram a importação de petróleo e o uso do carvão mineral há alguns anos, graças ao xisto. Em 2009, pela primeira vez em 60 anos, o país exportou mais combustíveis fósseis e seus derivados do que importou. A projeção é que, em 2020, os EUA precisarão importar apenas 30% do petróleo que consomem, em comparação com os 60% de hoje. O país se tornará, assim, menos dependente de regiões do mundo que considera hostis ou turbulentas, como o Oriente Médio, e isso pode reduzir o poder de barganha dessas regiões. A nova oferta de gás também eleva a competitividade de setores que consomem muita energia e matérias-primas fósseis, como siderurgia, petroquímica e fertilizantes. Indústrias de vários setores vêm anunciando projetos por causa da nova fonte. O xisto poderá também tornar Europa e China menos dependentes do gás e do petróleo provenientes da Rússia e do Oriente Médio.
4. Qual o risco de extrair xisto?
Quebrar a rocha para liberar o gás pode consumir de 1 milhão a 5 milhões de litros de água em jatos de alta pressão. Apenas esse consumo já poderia ser questionado. Para piorar, a água é combinada a produtos químicos, a fim de manter o poço aberto. A mistura resultante, água ácida, não deve ser jogada em mananciais. O derrame de resíduos pode contaminar lençóis freáticos, rios, lagos e o solo (nos EUA, comunidades atribuem doenças no gado e em outras criações às operações de xisto). Há denúncias de que os poços possam se fechar em apenas seis anos e também de que a operação possa gerar pequenos tremores de terra.
Por temer os efeitos da fratura hidráulica, França, Bulgária e Estados da Alemanha, Austrália eEspanha, além de Nova York, nos EUA, baniram ou suspenderam seu uso. “O conteúdo da água e o destino correto dela ainda estão em estudo. Não se sabe o que é seguro fazer”, diz Avner Vengosh, professor de geoquímica e qualidade de água na Universidade Duke, nos EUA.
Existe o risco de escape de gás metano dos poços. Ele pode ir para a atmosfera e contribuir para o efeito estufa. Segundo os críticos, o gás pode também saturar as tubulações. Em alguns locais próximos a operações de xisto na Pensilvânia, nos EUA, é possível pôr fogo na água da torneira, dada a concentração de gás. Não foi provado de onde vem o metano nas tubulações.
5. O Brasil é cuidadoso?
Não. Faltam planejamento e prevenção. A Agência Nacional do Petróleo (ANP) diz preparar as regras necessárias, mas elas não estarão prontas até outubro, primeira data marcada para o leilão. “A técnica não é trivial, mas é largamente conhecida. Com um bom projeto e execução competente, não existirão maiores problemas”, diz o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão. Diante dos problemas nos EUA, a avaliação parece otimista demais. Segundo a ANP, caberá a cada Estado criar normas ambientais para explorar o xisto. Nenhum dos 16 Estados que parecem ter reservas definiu regras ou informa o que exigirá das empresas. Em São Mateus do Sul, os problemas começam a aparecer. A Promotoria de Justiça local entrou com uma ação contra a Petrobras por uma possível contaminação. Um estudo feito na Universidade de São Paulo (USP) revela excesso de poluentes atmosféricos e mercúrio no leito de um rio.
6. Como o Brasil deve explorar o xisto?
Sem pressa e com padrões de qualidade ambiciosos. Essa é uma das poucas áreas em que o Brasil pode se dar ao luxo de avançar devagar. As fontes renováveis respondem por 45% da energia brasileira, em comparação com 13% no mundo. Devemos manter esse bom índice o mais alto possível. Entre as fontes não renováveis, o país ainda tem a explorar muito gás natural convencional, mais fácil e barato que o gás de xisto. O governo deveria usar o xisto como uma meta mais alta, a fim de incentivar futuros saltos tecnológicos no setor de energia.
Superar desafios anteriores, como plantar no Cerrado ou extrair combustível do subsolo marinho, resultou em muito mais que soja e petróleo. Desses desafios nasceram gerações de empresas e profissionais bem qualificados, aptos a atuar em setores como software, engenharia, robótica, biotecnologia e meteorologia. Da mesma forma, a busca pelo gás de xisto só terá sentido se gerar, pelo caminho, profissionais e empresas competitivos globalmente. Eles deverão ser capazes de atuar em frentes fundamentais no século XXI, além do xisto, como proteção e descontaminação do solo e da água, recuperação de ecossistemas e análise geológica. As exigências para as operações no xisto têm de ser definidas antes do leilão das áreas a explorar. “É assim que conquistaremos competitividade. Temos de preparar o país para esse momento”, diz a pesquisadora Rosemarie Bone, da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A AIE sugere, num estudo publicado no ano passado, boas práticas para a explorar o xisto. As regras incluem divulgar as substâncias químicas usadas no subsolo, avaliar a disponibilidade de água para a operação, prevenir a contaminação dos mananciais, analisar o impacto e os riscos para as comunidades locais. A extração de gás e óleo do xisto tem potencial destrutivo, mas pode também gerar emprego, renda, energia e novas tecnologias.
Revista Época
Nenhum comentário :
Postar um comentário