Pe. Nelito Dornelas*

As pessoas são levadas a depender cada vez mais da diversidade e do acúmulo dos objetos industriais, adquiridos mediante a máxima exploração dos recursos da natureza. Tudo é programado para que se possa obter o máximo do prazer, os quais, uma vez adquiridos, já perdem o potencial de estímulo. Isso tem sido uma constância em todas as dimensões da vida.
Esta questão está ligada à subjetividade e à cultura e tem lastros no modelo econômico e social, configurando em última instância o Estado que temos. Nesse sentido, afirmo que a concepção de sociedade regida pela economia de mercado é uma sociedade imaginária, construída por um grupo especifico da sociedade, a classe dominante.
Dizer que uma concepção é imaginária não significa dizer que ela é impotente para alterar a realidade. Ao contrário, boa parte do que condiciona os ideais de vida e as condutas cotidianas das pessoas é crença imaginária. O imaginário possui em si uma enorme capacidade de domínio. Não é ilusório, é muito real. As crenças culturais são produtos de nosso modo de agir e dão sentido às nossas ações. É nesta perspectiva que analisamos nossa sociedade como algo que é produzido pelas decisões humanas e, ao mesmo tempo inventa um tipo de ser humano. No caso, o homo consumens.
Assim, a sociedade de mercado consumista depende das atitudes e disposições psicológicas dos indivíduos para agir e pensar como se ela existisse realmente. E de tanto repetir este chavão ideológico, ela acaba existindo de verdade. As disposições e atitudes que contribuem para a reprodução da sociedade de mercado atual são: a pessoa deve se deixar seduzir pela propaganda de mercadorias; deve possuir uma identidade pessoal flexível; deve estar convertido à moral das sensações, ou seja, ter pretensões a satisfação em curto prazo, em detrimento de satisfações que exigem projetos de longo alcance. Aproveitem o hoje!
Essas três características são indicativas da maneira como nos relacionamos com os objetos, com nossa história pessoal e com nosso corpo e, em consequência com nosso habitat, nosso território. Analisemos cada uma em particular. Tomemos a primeira, a relação com os objetos. Para que o mercado funcione é preciso que o sujeito esteja sempre disposto a adquirir os novos produtos criados pela indústria. A isso se costuma chamar consumismo. A palavra consumismo é inadequada para designar o hábito econômico ao qual se refere, por dois principais motivos: primeiro, por nos fazer crer que consumimos coisas que, de fato, compramos; segundo, por dar a entender que somos todos iguais diante da possibilidade de comprar mercadorias produzidas e vendidas em larga escala.
Na verdade, as únicas coisas que consumimos são substâncias metabolizáveis como alimentos e remédios. No entanto, ao empregar a palavra consumir, estamos afirmando nossa condição de organismos físicos naturais. Desse ponto de vista todos somos iguais, dado que nossas necessidades biológicas são idênticas. Entretanto, se olhamos o consumo como equivalente a poder de compra, não é isso que acontece. Comprar não é uma ação regida por necessidades biológicas, mas um ato com implicações sociais e politicas. Diante de atos desse tipo somos todos diferentes e desiguais.
Adquirir mercadorias por meio de compra já define quem é quem no universo social. A maior parte da população tem um poder de compra extremamente reduzido e alguns, para possuir o que desejam, roubam ou furtam. Os chamados objetos de consumo, dessa forma, nem são consumíveis, nem estão igualmente disponíveis para todos os indivíduos. A produção de objetos é seletivamente organizada de maneira a ser seletivamente distribuída pelos que têm muito dinheiro, pouco dinheiro ou nenhum dinheiro.
Por que nos deixamos convencer de que somos consumidores, ao ponto de assumirmos alegremente tal identidade social? Hoje, o próprio conceito de cidadania já se transformou em ser consumidor. Noutras palavras, o grau de cidadania é medido pela quantidade de objetos industriais de consumo que possui uma pessoa. Comprar se tornou equivalente a consumir, porque o ritmo de produção das mercadorias nos obriga a descartá-las depois de um breve uso. Consumo é uma metáfora que alude à rapidez com que adquirimos novos objetos e inutilizamos os velhos. Ou seja, tratamos os objetos como tratamos substâncias que se prestam à reprodução dos ciclos biológicos, donde a assimilação do ato de comprar ao de consumir.
Entendemos o sentido metafórico da palavra consumo aplicado ao ato de comprar, mas não as causas do hábito que o tornam inteligível. Por que as pessoas adotam atitudes consumistas se podiam se conduzir de modo diferente? A resposta, geralmente dada, é por causa da moda! A moda, no entanto, não é um fenômeno moderno. Moda e propaganda existem há trezentos anos, desde o início do capitalismo industrial. Os indivíduos, portanto, têm de comprar as mercadorias para que a máquina do lucro não pare. É claro que os consumidores não são fisicamente forçados a comprar o que não desejam, são seduzidos pela propaganda comercial.
De fato, a publicidade e a moda criam desejos artificiais, que, pela repetição e pela sedução, são integrados ao repertório de aspirações dos sujeitos. Doutro lado, não é verdade que nos comportamos como compradores sonâmbulos, manipulados pelo eixo do mal da publicidade e da moda. As pessoas, em geral, sabem o que estão fazendo ao sair de casa para comprar objetos em supermercados, lojas, butiques ou centros de compra. Ao comprar, estão adquirindo o que julgam importante possuir, por uma ou outra razão. E mais, nem tudo que compramos nos foi apresentado pela publicidade. No caso, as drogas ilegais são um exemplo gritante de objetos consumidos em grandes proporções que têm sua venda e sua publicidade juridicamente proibidas.
O que determina a força do apelo consumista é o fato de os indivíduos se deixarem seduzir pela propaganda de mercadorias. Mas por que eles se deixam seduzir? Por que se deixam converter à prática econômica que trata os objetos como coisas descartáveis? Por que permitimos a existência de um sistema econômico depredador da natureza? Por aceitamos um Estado que se coloca a serviço do capital em detrimento do bem estar das pessoas? Para arriscarmos uma compreensão da questão, é preciso aprofundar as características psicológicas dos sujeitos que são o motor do imaginário do mercado e do consumo.
Acredito que os indivíduos se deixam seduzir pelo consumismo porque esse hábito atende a reais necessidades psicossociais. Essas necessidades derivam, entre outros fatores, da moral moderna, cujo fim último é o prazer sem limites. Dito de outro modo, a publicidade não é onipotente. Os indivíduos não são fantoches manipulados pela propaganda, como se costuma pensar. Se grande parte deles se deixa persuadir pela propaganda é porque, em certa medida, encontra na posse dos objetos industriais um meio de realização pessoal, prazerosa. Essa aspiração à realização é o motivo do anseio pelos objetos ditos de consumo. Vejamos, nos próximos capítulos como a nova moral do prazer contribui para a produção do psicossocial do desejo de consumir e sustenta o Estado do viver bem que é exatamente ao contrário ao Estado do Bem Viver.
*Pe. Nelito Dornelas é articulador da 5ª SSB e assessor das pastorais sociais da CNBB
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