Não ficaram os risos dos que se foram, nem daqueles que, agora adultos, comemoraram aqui aniversários infantis.
'Olho o salão de festa, o tempo que escoa apressado e não sei para que lado eu vou'.
Por Ricardo Soares*
Quis o destino que numa noitinha, no final de abril de 2010, depois de muitos anos e tantas voltas, eu me visse dentro do salão de festas do prédio onde morei mais de 20 anos. As circunstâncias que lá me levaram são irrelevantes. O que conta é o homem cinquentão sentado à mesa do remoto salão de festas a anotar em seu bloquinho essas vagas impressões de uma vida que se embute em outra vida. O cinquentão tem seu celular quebrado e o seu filho também. Sendo assim, ele espera, em vão, o filho chegar sem poder comunicar que aqui está à espera do forte abraço após três meses de lidas africanas. O filho mora ainda no prédio onde está esse salão de festas quase mineral, inócuo, limpo e sem vida. Um salão de festas atemporal que não guardou nenhum dos muitos risos que aqui foram dados em tantas festas já festejadas.
Não ficaram os risos dos que se foram, não ficaram os risos daqueles que agora adultos comemoraram aqui aniversários infantis. Alguns deles inclusive jazem adultos defronte às novelas em andares acima desse salão e outros tantos partiram e já não se lembram deste salão de festas silencioso, quase triste e que não sente e não vê os anos voarem. Aqui, meus filhos comemoraram algumas alegrias e a festa simples e dengosa do casório da filha também aqui foi realizada muitos cabelos pretos atrás e muitos quilos a menos. Eu corri por aqui tentando ser um anfitrião eficiente. E fui, pois sequer sabia que essa lusitana melancolia um dia me cercaria compondo toscas rimas em prosa e tentando entender como é que o tempo passa e uma vida se embute na outra.
O salão de festas é grande e retangular. Tem enormes janelas de vidro. A mesa defronte da qual me sento tem em volta seis cadeiras e uma luz fria e baça ilumina o meu bloquinho Moleskine e a caneta azul clara que deslisa. No lado esquerdo do salão de festas, há muitas cadeiras empilhadas como a lembrar de todos aqueles que já deixaram a festa. Eu mesmo aqui reconheço tias que já se foram, a mãe e o pai que já partiram e mesmo aquele zelador de bigode que por aqui trabalhou tantos anos e um dia pirou de bebida e amor desfeito e deu cabo da vida. Clichê, pois, dizer que a vida é sempre um folhetim, até porque só damos bola mesmo aos folhetins eletrônicos .Não temos tempo sequer de perceber que não temos dado tempo ao que realmente interessa. Mas é que a vida às vezes se encarrega de sozinha frear nossos impulsos, desacelerar nossos batimentos cardíacos e nos jogar numa quarta- feira de noite dentro de um salão de festas inanimado onde eu não entrava há séculos. Aqui ficou uma vida que embuti em outra vida.
Sempre existiram os lugares onde eu gostaria de estar, outros que após visitar eu quis regressar. Mas aqui nesse salão de festas de lembranças antigas eu nunca pensei em voltar. Melhor, sequer pensava nele até nesse começo de noite antes de mergulhar cá dentro fugindo do friozinho cortante que me incomodava na portaria. Eis, pois, que vim parar nesse casulo e sequer me dava conta que aqui tantas lembranças se escondiam. Elas cá estão postas nessa mesa lisa ao redor da qual ninguém se senta nas cadeiras vazias.
Estou na cabeceira e não me sirvo de nada. Não sirvo nada, não busco nada. Apenas olho em volta. Depois olho adiante, a partir da cabeceira, e vejo através da janela o topo da grande ladeira que margeia esse prédio. Muitos carros velozes descem com as luzes acesas. Há um movimento nessa ladeira impensável quando para cá me mudei no início dos anos 80. Mas hoje o movimento inusitado joga luzes no passado que tive nesse salão, nesse prédio, nessa rua.
Voltei da África e nunca me imaginei estacionado aqui. Que esquisita manobra do destino essa. Olho o salão de festa, o tempo que escoa apressado e não sei para que lado vou. Se volto, não acho nada. Se fico não deixo raízes e se sigo adiante capaz que ninguém me encontre. Vai ver que por isso mesmo viver continue sendo tão assaz interessante.
Redação Dom Total
*Ricardo Soares é diretor de TV, escritor e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) . Escreve todos os dias também o Diario do Anonimato do Mundo em www.revistapessoa.com.
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