01/10/2013

Por que o feminicídio não diminuiu depois da Maria da Penha?

Se ela (Lei Maria da Penha) funcionasse direito, seria espetacular, mas ainda assim não seria suficiente. A mudança deve ser cultural, estrutural, encarando o fato incontornável de que mulheres somos gente.

"O que mata mulheres é a misoginia, é a objetificação dos nossos corpos, a desumanização a que somos submetidas a todo instante."
Por Nádia Lapa 

Quarta-feira passada, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou os resultados de uma pesquisa sobre o número de feminicídios após a vigência da Lei Maria da Penha. O resultado assusta: 15 mulheres são mortas por dia no Brasil, uma a cada uma hora e meia. É a chamada violência de gênero, aquela perpetrada contra mulheres em razão de elas serem... mulheres.

A situação é tão grave que a CPMI de Violência Contra a Mulher previu, no relatório final, a inclusão do feminicídio como qualificadora no crime de homicídio. Muitas vezes tratados pela imprensa como "crimes passionais", 40% dos casos têm parceiros ou ex-parceiros como assassinos. A porcentagem corrobora o achado por outra pesquisa divulgada recentemente e sobre a qual falei aqui no blog, a percepção da sociedade sobre violência e assassinato de mulheres, do Instituto Patrícia Galvão. Nela, 50% dos entrevistados apontaram que o domicílio é o lugar no qual as mulheres se sentem mais inseguras. Faz todo sentido, quando se junta os resultados das duas pesquisas. Quem se sentiria confortável em casa, se o algoz mora lá?

A situação é grave e, não, não se mata por paixão, mas sim por poder, controle. "Se ela não pode ser minha, não será de mais ninguém", pensam - e agem - os criminosos. O Ipea apontou que não houve diminuição dos números de feminicídio depois da vigência da Lei Maria da Penha. Foi o suficiente para que a lei fosse criticada, como se a aplicação da mesma ocorresse nos termos previstos. 

Infelizmente não é. São recorrentes os casos em que as mulheres registraram diversas ocorrências policiais contra ex-parceiros, mas nada é feito. As medidas protetivas, que incluem a estipulação de distância mínima entre agressor e vítima, tal qual os filmes americanos, não funcionam. As casas de acolhimento não existem em número suficiente, e a mulher agredida não tem para onde ir, sendo obrigada a permanecer junto ao agressor ou procurar a família, cujo endereço o parceiro conhece bem. A Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República está construindo uma casa de passagem em cada capital brasileira. Iniciativa ótima, mas como resolver o problema oferecendo apenas 20 camas para cidades com milhões de habitantes?

Um dos grandes avanços da Lei Maria da Penha é o reconhecimento de que existe violência doméstica, tema que não era sequer falado profundamente antes do advento da lei. Se ela funcionasse direito, seria espetacular, mas ainda assim não seria suficiente - a mudança deve ser cultural, estrutural, encarando o fato incontornável de que mulheres somos gente.

Um articulista do jornal Folha de S. Paulo, Hélio Schwarstman, atacou duramente a Lei, aparentemente desconhecendo o fato de que as medidas protetivas não funcionam porque "não há efetivo" para garantir a segurança das mulheres já agredidas anteriormente. Ele também culpabiliza mulheres pela própria agressão sofrida, e arremata com a desculpa de que os homens são mais fortes, por isso matam mais.

Fico pensando na própria Maria da Penha, eletrocutada e atingida por disparos de arma de fogo. Que tipo de força física é necessária para empunhar uma arma? Não arranjemos desculpas. O que mata mulheres é a misoginia, é a objetificação dos nossos corpos, a desumanização a que somos submetidas a todo instante. Uma lei, por melhor que seja, não é capaz de mudar a mentalidade e a cultura de um povo.
Carta Capital, 30-09-2013.
Dom Total

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