22/11/2013

Jovens jornalistas desvendam aspectos de Fortaleza em livros-reportagem

As relações estabelecidas entre os cidadãos e a cidade onde habitam fazem da convivência com o espaço urbano uma experiência que pode tomar diferentes formas e caminhos. No caso das jornalistas Isabela Bosi e Juliana Diógenes, o afeto firmado entre um bar e um hospital de Fortaleza gerou dois livros que, além da aprovação dos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) das duas, deu à luz as mais recentes obras da Série Livros-Reportagem, publicada pela Editora UFC: Bar do Anísio - Casa de liberdades, de Isabela Bosi, e IJF - Histórias despercebidas de um hospital, de Juliana Diógenes, foram lançados nessa quinta-feira (21) como parte do VI Festival UFC de Cultura - Multiculturalismo e raízes.

Isabela Bosi conta que sempre desejou escrever um livro-reportagem que envolvesse os temas música, memória e cidade. “Como aspirante a jornalista, meus maiores interesses sempre foram esses. Pesquisando sobre o Pessoal do Ceará, movimento cultural dos anos 1970, me deparei com o Bar do Anísio, que ficava na Av. Beira-Mar. Num artigo do Pedro Rogério, ele apenas cita o Bar como ponto de encontro da juventude artística da época. Fiquei curiosa para saber que bar era esse e fui pesquisar. Para minha surpresa, não encontrei mais nada sobre”, relata.

A curiosidade sobre o lugar instigou a jornalista a se aprofundar na investigação. Isabela revela que achou estranho o desconhecimento sobre o espaço que marcou uma geração. A constatação levou a jornalista a refletir sobre a forma como a cidade preserva sua história. “Me envolvi completamente com a ideia de pesquisar sobre esse espaço. Fortaleza é uma cidade que não tem cuidado algum com a própria memória afetiva, com a preservação de espaços como esse e isso sempre me incomodou muito. De alguma forma, escrever sobre o Bar do Anísio é, também, uma forma de me colocar em oposição a esse descuido com a história da cidade, de contribuir para que esse lugar não se perdesse no tempo como aconteceu com tantos outros”, argumenta.

Já a ideia de escrever um livro sobre o Instituto Dr. José Frota nasceu, segundo Juliana Diógenes, por acaso e se fixou por encantamento. “Havia interesse na apuração e no registro aprofundado do cotidiano do IJF, embora nunca tivesse pisado no hospital até então. A proposta foi fugir do habitual estereótipo de hospital feio, repugnante e sucateado, que povoa o imaginário de muitos fortalezenses. A ideia foi dar voz à bibliotecária, às recepcionistas, aos zeladores, enfim, a quem faz o hospital acontecer nos bastidores. Foi uma tentativa de colocar em relevo o mundo encantador de gente anônima. O desafio foi me espantar com o que ninguém mais é capaz de se assombrar, contar histórias do que há de simples no IJF, ressignificá-lo e elevá-lo ao sublime”, explica a jornalista.

Sobre os livros

IJF - histórias despercebidas de um hospital reúne crônicas sobre causos surpreendentes, pessoas comuns e detalhes insólitos do maior hospital de urgência e emergência do Ceará. Conhecido por prestar atendimento a pacientes em estado grave, o hospital é retratado no livro sob o ponto de vista de personagens anônimos. Um dos capítulos lista as dez coisas que só acontecem no IJF e o que encerra a obra é um relato detalhado, em primeira pessoa, de um plantão médico com duração de doze horas.

Bar do Anísio - Casa de liberdades conta um pouco da história desse bar que existiu na
Beira-Mar dos anos 1960 até meados de 1980, reduto da juventude artística, boêmia e transgressora da época. Durante um ano, cerca de 20 frequentadores foram entrevistados - entre eles artistas como Ednardo, Fausto Nilo e Rodger Rogério - e, a partir de extensa pesquisa e das memórias afetivas de cada um, a história do Bar pôde ser reconstruída. O livro contém fotografias e depoimentos divertidos e emocionados sobre uma Fortaleza nem tão distante assim, mas já esquecida por muitos.

Os dois livros foram contemplados pelo edital da Universidade Federal do Ceará (UFC) que, desde 2011, visa a publicação de livros-reportagem dos alunos do curso de Jornalismo da Universidade.
 
Confira abaixo entrevista com as autoras de IJF - histórias despercebidas de um hospital e Bar do Anísio - Casa de liberdades, Juliana Diógenes e Isabela Bosi, respectivamente.


Agência da Boa Notícia - Quais foram as principais dificuldades para desenvolver o trabalho que resultou no livro?
(Juliana Diógenes) A burocracia para conseguir autorização do Comitê de Ética da UFC e do IJF, com certeza. E por isso também a dificuldade em tirar fotografias dentro do IJF. Havia o compromisso em preservar os pacientes e acompanhantes. Por isso, há poucos registros fotográficos no interior do hospital. Outra dificuldade foi o envolvimento emocional. É difícil passar meses dentro de um hospital, conhecendo pessoas, ouvindo todo tipo de caso, e não se emocionar. São histórias sofridas, de gente que sente dor, ainda que houvesse a tentativa constante da minha parte de imprimir certa leveza à narrativa. Um dia especialmente difícil foi quando acompanhei um plantão médico de domingo, passando 12 horas seguidas no IJF. Eram muitos cheiros ao mesmo tempo: sangue, urina, vômito, soro. Durante a apuração, cheguei a ficar tonta e tive dificuldade de respirar no pátio da emergência, que fica muito úmido.

(Isabela Bosi) Escrever é sempre uma dificuldade. Entrar na casa dos outros, na história e nas lembranças de cada um, não é a coisa mais fácil. Isso mexe com emoções nossas e dos outros e, apesar de ser muito emocionante e prazeroso, é bastante delicado e exige muito. Mas eu diria que a maior dificuldade foi encontrar informações/dados desse período da Beira-Mar. Não há muita coisa documentada sobre a história da Beira-Mar, as transformações que ocorreram naquela orla. Diria que praticamente nada. Então foi como desbravar uma floresta virgem.

A.B.N -  Como foi o processo criativo e a metodologia da pesquisa de vocês?
(J.D) O processo criativo teve influência direta de obras de dois jornalistas literários: Fama & Anonimato, do Gay Talese e O livo amarelo do terminal, da Vanessa Barbara. Os dois escrevem reportagens de forma leve, rica em detalhes e bem-humorada. Transformam em sublime o cotidiano de pessoas comuns. E o resultado é uma narrativa em que o escritor-repórter carrega o leitor pela mão para dar um passeio - no caso da Vanessa Barbara, o passeio é na rodoviária do Tietê, em São Paulo, e Gay Talese conduz o trajeto pelas ruas da cidade de Nova York. É a fórmula para uma boa reportagem, na minha opinião. Foi essa a tentativa. A metodologia de pesquisa incluiu observação participante, entrevistas, imersão, pesquisa em documentos oficiais, leitura de livros relacionados ao hospital e uso de técnicas do jornalismo literário. O livro reúne crônicas em nove capítulos, que podem ser lidos em qualquer ordem. Entre alguns capítulos, há crônicas-pílulas que são piadas, lendas ou causos engraçados contados pelas fontes durante as entrevistas. É o tempero do livro.

(I.B) Eu não sou o tipo de pessoa que consegue ter tudo muito bem planejado. Então, meu processo foi muito pela intuição e o fluir das coisas. Primeiro, pesquisei o máximo que pude em livros e jornais da época e, depois, passei para as entrevistas. Eu não sabia o que esperar dessas conversas. Foram elas que guiaram toda construção do livro. Comecei com o Fausto Nilo, que me deu uma aula de história de Fortaleza e me passou outros nomes para eu entrevistar. No início, minha listinha de entrevistados tinha uns 15 nomes. Ao final, já estava com umas 50 pessoas no papel. Foi difícil saber a hora de parar, onde parar. Decidi terminar na 20ª entrevista, quando percebi que jamais seria capaz de conhecer a história completa daquele espaço, nem de conversar com todos os frequentadores. Isso me tranquilizou, pois sabia que meu trabalho seria o de recortar e de me colocar no texto da forma mais sincera possível.

A.B.N -  Quais são as lições que o leitor pode extrair dos livros IJF - histórias despercebidas de um hospital e Bar do Anísio - Casa de liberdades?
(J.D) Acredito que possa tirar lições de vida e morte. Todo mundo conhece alguém que já foi hospitalizado: amigo, familiar ou colega. Todo mundo já entrou num hospital, seja ele público ou privado. Agora, dificilmente as pessoas conseguem reparar no mundo encantador que pode se tornar um hospital - qualquer lugar, na verdade. Basta lançar um olhar de curiosidade e ser capaz de conversar com estranhos. Assim, a gente descobre que a dor do outro é muito parecida com a nossa e que a alegria do outro também pode ser nossa. Encarar os problemas de forma bem-humorada pode ser mais saboroso do que se entregar ao sofrimento com amargura. Acho que essa é outra lição que pode ser extraída.

(I.B) Não sei se esse é um livro que ensina lições às pessoas. É um livro transgressor, de certa forma, pois conta a história de uma juventude revolucionária, livre, viva. Talvez uma "lição" que ele possa dar para as novas gerações seria a de que a felicidade está diretamente ligada à relação que estabelecemos com o lugar onde vivemos. Ser feliz é frequentar e ocupar espaços como o Bar do Anísio, à beira do mar, livre de convenções e regras inúteis. Ainda existem lugares assim em Fortaleza. E sempre podemos inventar novos, vale lembrar!

A.B.N -  E para vocês? O que aprenderam com essa experiência?
(J.D) Em dez meses de entrevistas, pesquisas, rascunhos e esboços, dediquei-me a conhecer um IJF desconhecido - ou, no mínimo, escondido. Aprendi, por exemplo, a apurar com profundidade, a conversar e não apenas entrevistar, a manter todos os sentidos aguçados, a flanar com discrição dentro de um ambiente fechado como IJF. Descobri que o cheiro do IJF é inconfundível. E que um feriado da Semana Santa leva mais acidentados ao hospital do que o Carnaval. Entrevistei do superintendente ao zelador, da bibliotecária ao médico com 50 anos de IJF. Aprendi termos médicos e tive de traduzi-los numa linguagem mais simples. Foi desafiador para mim.

(I.B) Nossa! Tanto. Aprendi tanto! Aprendi a escrever, a perder o medo (um pouco) de escrever. Aprendi mais sobre a cidade em que vivo, sobre a história de tantas pessoas especiais. Aprendi que a gente deve ter coragem de fazer o que gosta, mesmo com medo.

A.B.N - Qual é a reflexão que vocês fazem sobre a relação entre o tema do trabalho  de cada uma e a cidade?
(J.D) Como repórter e, sobretudo, fortalezense, sinto que hoje conheço muito mais sobre a cidade só de ter passado 10 meses num prédio de oito andares, ouvindo histórias de gente de toda cor, gênero, origem, sorriso e sofrimento. No fim, acho que descobri que somos todos um pouco como o IJF: sentimos dores, choramos, sofremos com estereótipos e julgamentos, até desagradamos alguns à primeira vista, mas basta um olhar mais demorado e complacente do outro, que podemos surpreender positivamente. Além disso, a vista panorâmica de Fortaleza do último andar do IJF é uma das mais bonitas que já vi.

(I.B) O tema do meu trabalho é a cidade. Eu falo do Bar para poder falar da Cidade. Eu falo da Beira-Mar para falar da especulação imobiliária e da falta de cuidado que existiu com a orla da nossa praia. Eu falo de uma geração de jovens para refletir sobre a minha geração, sobre a forma como as gerações têm se relacionado com pessoas e espaços. Tudo isso é falar de Fortaleza.


Fonte: Agência da Boa Noticia

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