08/12/2014

John Lennon manda lembranças: o 8 de dezembro de cada um

por Geneton Moraes Neto

John Lennon, Ringo Starr, Paul McCartney e George Harrison desembarcam no aeroporto John F. Kennedy Airport, em Nova York, EUA, onde são recebidos por multidão de fãs em fevereiro de 1964



Bato o olho no alto da página do jornal para checar a data e se estou no planeta Terra: oito de dezembro!


A data – por um desses mecanismos pessoais e intransferíveis – deflagra uma torrente de lembranças sobre um daqueles acontecimentos que “marcam uma geração”: a morte de John Lennon, que foi assassinado a tiros por um fã enlouquecido, num oito de dezembro, no saguão de entrada de um edifício chamado Dakota, em Nova York.


Quem um dia foi devoto dos Beatles deve se lembrar exatamente onde estava quando recebeu a notícia de morte de Lennon. Não sou exceção. Por coincidência, 14 anos depois, em 1994, um grande nome da MPB morreria num oito de dezembro, também em Nova York: o maestro Tom Jobim.


(Não faz tempo, um manifestante, fatigado de um mundo sem utopias, pichou num muro: “Chega de realizações! Queremos promessas!”. Bingo. O meu demônio-da-guarda me sopra no ouvido, neste oito de dezembro: “Chega de notícias! Queremos lembranças!”. Faço, então, uma pequena expedição pelo Boulevard da Memória).


O locutor-que-vos-fala estudava cinema e, nas “horas vagas”, fazia bicos como motorista de uma família rica e camareiro de um hotel no Quartier Latin, em Paris, naquele dezembro de 1980 (um dia, quem sabe, se me sobrarem tempo e neurônios, rabiscarei as Memórias Secretas de um Camareiro Acidental…).

Dias antes, por uma grande coincidência, eu comentara com um amigo – Fernando Correia, à época estudante de economia – o plano de fazer, em Nova York, o que fizera em Paris: desembarcar “na aventura”, pela simples curiosidade de ver o que se escondia além da linha do horizonte da Cidade do Recife. “Quem sabe, vou tentar entrevistar aquele alcoólatra decadente”, disse, na brincadeira, numa referência injusta a Lennon.


Porteiro da noite num hotel nos arredores de Paris, este amigo ouviu no rádio, na madrugada francesa, a notícia que começava a correr mundo: John Lennon tinha sido assassinado naquela noite de inverno.

De volta à “pensão” na qual morava um punhado de brasileiros, depois de cumprir o plantão noturno, ele deixou, de manhã de bem cedo, embaixo da porta do meu quarto, um bilhete: “Bicho, mataram John Lennon!”. Pensei que era brincadeira. Ao sair para a escola, em Nanterre, deixei embaixo da porta do quarto do vizinho outro aviso, em retribuição: “Bicho, mataram Fidel Castro!”.


As notícias, “naquele tempo”, corriam velozes, mas não na velocidade da luz, como acontece hoje. Não existia internet! As edições da manhã dos jornais franceses não publicaram nada sobre a morte de Lennon, por conta do fuso horário. Quando a bomba explodiu na Europa, os jornais já estavam na rua.

“Por desencargo”, dei uma olhada nas primeiras páginas estendidas numa banca perto do metrô Place D´Italie. Nada. Perguntei a colegas que frequentavam um seminário sobre documentários, na Universidade de Nanterre: “Vocês ouviram falar alguma coisa sobre John Lennon?”. Incrivelmente, nada.


O choque veio no caminho de volta para a casa. A manchete do vespertino France Soir berrava, num título que, para mim, foi inesquecível, pelo impacto: “John Lennon assassinado por um admirador decepcionado. Era o mais talentoso dos Beatles”. Guardei o jornal comigo pelas décadas seguintes.


Não é exagero dizer que um geração inteira se sentiu de alguma maneira órfã naquele oito de dezembro. Perto do Natal, Joan Baez foi fazer um concerto ao ar livre, diante da Catedral de Notre Dame. Não disse nada sobre a tragédia, mas, ao final do show, cantou “Let it Be”, acompanhada apenas do violão. A multidão fez coro. A cena foi bonita.


(Fui ao show por complacência dos meus “patrões” – a família rica para quem eu “trabalhava” como motorista. O que não faz “um rapaz latino-americano /sem dinheiro no banco / sem parentes importantes”, em busca de uns trocados para ir tocando a vida? O casal ia a uma ceia antecipada de Natal, na casa de uma filha. Perguntou se eu poderia fazer uma jornada extra naquela noite, já que eles queriam levar o neto de carro para o jantar em família. Era algo que só acontecia uma vez por ano. Douglas era um menino especial, incapaz de se mover sem ajuda. Aprendi com ele lições inesperadas sobre a convivência com gente especial. Promessa dois: um dia, quem sabe, se me sobrarem tempo e neurônios, rabiscarei as Memórias de um Motorista Acidental… Eu disse a meus “patrões” que sim, claro, não poderia deixar de levar Douglas e os avós para a ceia de Natal, mas gostaria de ver Joan Baez cantando na frente da Notre Dame. E eles: “Você nos deixa, vai ver e volta para nos levar de volta para casa, no fim da noite”. E assim foi feito. Duvido que o casal, simpático e bem situado, imaginasse quem era a cantora de protesto Joan Baez.)


O filme “Let it Be” voltou a cartaz, num cinema perto do metrô Odeon. Fui ver. Fazia frio. A plateia era de beatlemaníacos repentinamente jogados na “orfandade”.


Paulo Francis escreveria na “Folha de São Paulo”: “A morte de Lennon é o fim de uma época, talvez a última que conheçamos em que uma geração de jovens talentosos, como os Beatles, tentou humanizar o nosso mundo de poderes impiedosos, impessoais e letais. Lennon baniu Reagan, Brejnev, Israel, Síria e Jordânia do centro das notícias. Talvez porque a maioria das pessoas reconhecesse nele um ser humano, enquanto esses outros problemas não podem ser tocados pelo cidadão comum, que, se interessado neles, é submetido à dieta de “press releases” dos poderosos. Com Lennon, se foi não só uma era, nos parece, mas um anseio de simplicidades que se tornaram aparentemente impossíveis em nosso tempo”.


Francis acertou na mosca: além de tudo, ali, se perdia para sempre uma espécie de inocência e de ingenuidade que, embalada por belíssimas canções, parecia protegida e inalcançável pelos horrores do mundo.


A revista “Newsweek” publicaria um lead brilhante (aos não iniciados em jornalismo: lead é o início de uma reportagem – aquelas frases em que o autor tenta fisgar logo o leitor. O lead da “Newsweek” reproduzia o momento em que a figura nefasta de Mark David Chapman, o assassino, abordou Lennon, na calçada do Edifício Dakota: “Era apenas uma voz, saída de dentro de uma noite americana: “Mister Lennon?”.

Faço um pequeno tour pelo Youtube. Lá, vejo Joan Baez cantando “Let it Be”, uma das melhores canções da dupla imbatível, Lennon & McCartney.


Quando o casal Rosenberg, acusado de espionagem pró-União Soviética, foi executado nos Estados Unidos, Jean Paul Sartre escreveu: “O casal Rosenberg morreu, a vida continua. Não era o que vocês queriam?”.


Hoje, o assassino Mark David Chapman mofa numa prisão – e o oito de dezembro traz de volta lembranças que, aos olhos de beatlemaníacos de todas as gerações, parecerão sempre irreais e absurdas.

É inevitável fazer o cálculo inútil: quantas e quantas belas canções não deixaram de ser escritas depois daquele fim de noite de inverno em Nova Iorque?


Não era o que os beatlemaníacos queriam.


(Aqui, uma das melhores pérolas do Lennon pós-Beatle: “Mother”. Em um verso, ele resume tomos e tomos de Sigmund Freud: “Mãe, não vá embora/ Pai, volte para casa”)


Não se fez, em música pop, nada que igualasse a beleza de Abbey Road – o auge dos Beatles. Os versos de“Golden Slumbers” soam tristemente irônicos aos ouvidos de beatlemaníacos embalados pelas lembranças “pessoais e intransferíveis” do oito de dezembro de cada um (“Boy / Você vai carregar este peso / Vai carregar este peso/ por um longo tempo).


*Foto: John Lennon, Ringo Starr, Paul McCartney e George Harrison desembarcam no aeroporto John F. Kennedy Airport, em Nova York, EUA, onde são recebidos por multidão de fãs em fevereiro de 1964 (AFP)



http://goo.gl/OhCwiJ

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