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‘Aparecer’ em vez de ‘ser’ não se enquadra na filosofia de Francisco.
Aquele soco de Francisco, palavra inesperada no discurso de um papa. No voo para Manila, ele respondia aos jornalistas sobre o massacre de Paris, análise sobre a liberdade religiosa e a liberdade de expressão. “Direitos humanos fundamentais. Cada um deve ser livre para praticar a própria religião sem ofender… Não se pode fazer a guerra ou matar em nome de Deus… Pensemos na nossa história: quantas guerras religiosas já tivemos… mesmo nós, pecadores… aquela noite de São Bartolomeu”.
Há 500 anos, 30 mil protestantes assassinados pelos soberanos católicos da França: “Cada um deve ter não só a liberdade, mas também o direito e a obrigação de dizer o que pensa para ajudar o bem comum… A obrigação de falar abertamente, mas sem ofender. Não se pode insultar a fé dos outros, nem reagir violentamente (eis a surpresa): porque, se um amigo diz um palavrão contra a minha mãe, espera-lhe um soco. É normal. Não se pode provocar… Um exemplo para dizer que, na liberdade religiosa, há limites”.
Nunca se ouviu um papa discorrer com o abandono cotidiano do fato de se dirigir a amigos preparados a não envolver no incenso o impulso de expressão de aparência imprópria nos lábios do herdeiro de Pedro. Uma admiração que corre na rede com abraços diversos: ternura de quem reencontra o léxico amigável das pequenas famílias devotas; irritação dos devotos daqueles devotos à tradição do papa angélico acima das pessoas.
“Quando eu era criança, a catequese ensinava que os protestantes iam para o inferno…” Ele muda de ideia enquanto passeia com a avó: ela o segura pelas mãos, e encontram as voluntárias do Exército de Salvação, chapéus engraçados que escancaram a sua admiração: “São protestantes, mas são boas”, assegura a avó. Em suma, para elas, nada de inferno, e o menino fica contente.
No avião para Manila, Francisco se deixou levar: “Devemos dizer sem vergonha: a Igreja está em contínua conversão”. Depois das declamações vibrantes do papa polonês e do rigor teológico do papa alemão, a normalidade do pontífice argentino mistura entusiasmos e perplexidades.
Como todo latino, ele sempre diz o que pensa, ignorando as solenidades às quais, por séculos, a sacra instituição acostumou fiéis turvos e distantes. Mas, como bom jesuíta, ele rejeita o clamor das aparências e se aproxima das pessoas no respeito à sua identidade.
Não importa se são papeleiros que seguem em frente recolhendo papel pelas ruas, ou chefes de Estado de reverências obrigadas às quais Bergoglio nunca se curvou.
Quem o conheceu nos anos da ditadura argentina, lembra quando escondia nas mentiras dos exercícios espirituais jovens judeus, ateus, protestantes, no Colégio Maximo de San Miguel, do qual ele era diretor.
Os controladores militares descobriram famílias inteiras com os olhos baixos sobre o prato da mesa, enquanto Bergoglio os acompanha com o coração na garganta e a ficção de uma serenidade imaginária. O fato de mascarar a solidariedade o treina ao silêncio. É o relato de Alfredo Luis Somoza, que hoje vive em Milão, presidente do ICEI, um dos fundadores da Radio Popolare.
Ele confessa o ateísmo, mas pede hospitalidade: o colégio como primeiro passo para a fuga dos militares. Ele confidencia aos amigos as etapas da viagem secreta para a Itália e chega a surpresa: “Enquanto elas seguiam em frente, aconteciam coisas que eu não conseguia explicar. Eu encontrava amigos que estavam me esperando para me transportar clandestinamente do Uruguai para São Paulo, até o navio italiano no porto do Rio”.
Viagem preparada por Bergoglio, sem dizer uma palavra. Ele afastou com displicência as graças de Somoza quando, anos depois, voltou para a Buenos Aires livre da ditadura. Com o exemplo da confidencialidade, convidou os asilados dos anos militares a abrirem mão de histórias e memórias.
E, quando se tornou papa, os jornalistas correm à juíza Alicia Oliveira, nas listas da morte dos generais: Bergoglio a escondeu no porta-malas, atravessando postos de bloqueio armados como fronteiras. “Passou tanto tempo, é melhor esquecer.” Como todos, a senhora também se adapta à vontade silenciosa de quem esquece o passado para decifrar o futuro.
O último “esqueçamos” é dos nossos dias. A lista Bergoglio “é o livro de Antonio Scavo, traduzido em 14 línguas: ele reúne histórias e palavras do jesuíta argentino (metade piemontês) que não quer rendas e inclinações, e foge das memórias para se misturar com os problemas das pessoas”.
Claudia Mori, produtora de cinema e esposa de Celentano, tinha proposto à Rai um filme em capítulos. Livro a ser transcrito em imagens. A Rai aceitou de braços abertos, mas aconteceu alguma coisa. “Aparecer” em vez de “ser” não se enquadra na filosofia de Francisco. E o entusiasmo da Rai se rende, se apaga lentamente. Rude assim.
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