19/01/2015

Mais de 50% das crianças diz apanhar dos pais


Fantástico mostra, em primeira mão, os resultados de um estudo abrangente


sobre os efeitos da violência na vida das crianças brasileiras.













O Fantástico mostra, em primeira mão, os resultados de um estudo abrangente sobre os efeitos da violência na vida das crianças brasileiras. O terror do tráfico e o abuso da polícia na rua; o castigo e a palmada dentro de casa sob o ponto de vista de quem tem entre 6 e 8 anos de idade.


Como meninas e meninos tão pequenos reagem a esse cotidiano violento?


O que é ter 8 anos e se arriscar só porque está brincando na calçada?


Menina: Vi muitas mortes e muito tiroteio. Aí minha avó não deixa eu ficar na rua por causa desses tiroteios.
Fantástico: Você já ouviu tiros?
Menina: Já.


O que é ter 7 anos e entrar em pânico ao visitar o pai?


Menina: Lá em cima, perto da casa do meu pai, tem vários bandidos.
Fantástico: É? Você tem medo?


O que é ter 6 anos e viver aterrorizada por quem nos deveria proteger?


Fantástico: E você tem medo da polícia?
Menina: Claro que tenho, né?
Fantástico: E tem medo por quê? Por que você tem medo da polícia?
Menina: Ela não dá tiro não, gente?
Fantástico: Dá tiro?
Menina: Claro que dá!


Pesquisa comprova que a violência urbana repercute dentro de casa


É a primeira vez que uma universidade brasileira faz um estudo sobre violência ouvindo crianças tão pequenas e com tanta profundidade. Financiada por uma fundação holandesa, uma equipe de cientistas da PUC do Rio Grande do Sul ouviu, durante dois anos, 540 crianças, a maioria entre 6 e 8 anos de idade, e também seus pais, irmãos e outros parentes.


Ao todo, 2.889 pessoas de 15 favelas e cortiços em três capitais – Recife, Rio de Janeiro e São Paulo – foram entrevistadas. “São dados extremamente desconfortáveis, mas são reais”, afirma Hermílio Santos, cientista social da PUC/RS.


A pesquisa que o Fantástico mostra, em primeira mão, comprova que a violência urbana repercute dentro de casa.


Mãe: Onde a gente se bate é um com um revólver na mão, outro vendendo uma droga, uma coisa e outra. Para quem é só fica difícil de criar seu filho, né? Vendo essas coisas, né?
Fantástico: Você não se sente segura onde você mora?
Mãe: Eu não. Nem um pingo.


A maioria absoluta das mães que veem alguém apontando arma de fogo sempre ou quase sempre admite punir severamente seus filhos pequenos sempre ou quase sempre. “Nós estamos falando do grito, do castigo, do bater e dar uns tapas”, explica Hermílio.


O castigo vem em primeiro lugar como método de correção. Mas não só aquele de sentar a criança em uma cadeira ou proibi-la de ver televisão.


Uma menina de 6 anos está acostumada à punição física.


Menina: Ela bota aquele caroço de milho e feijão e, por cima, ainda arroz. E me bota.
Fantástico: Você fica como? De joelhos?
Menina: É. Isso dói paca.
Fantástico: Dói? Tem marca no joelhinho? Essa marca é do milho?
Menina: É. Essa marca aqui é do milho?
Fantástico: E fica muito tempo?
Menina: Até de noite. Eu durmo com caroço de milho ainda.


Ao contrário do que se pensava, mãe é quem mais bate 


Bater no filho é o segundo método mais usado pelos pais. “Quando eu vejo que ela está querendo responder, aí não adianta mais colocar de castigo. Aí eu dou as tapas, depois de duas tapas vai para o castigo”, conta uma mãe.


No Rio de Janeiro, 71% das crianças de até 8 anos disseram já ter levado ao menos uma surra. No Recife, 75% delas. E em São Paulo, 57% disseram já ter apanhado.


Fantástico: Aquilo é um galho qualquer, né?
Menina: Não é um galho não.
Fantástico: O que é aquilo lá?
Menina: É vara. Meu pai que me bate com aquela vara ali. Aquela vara ali, atrás do muro. Aquela que é de marmelo.
Fantástico: Marmelo dói, né?
Menina: Marmelo? Pior que dói!


E começa quando eles ainda são bem pequenos. No Rio de Janeiro, 76% dos pais ou responsáveis admitiram bater em crianças de até 2 anos de idade. Em São Paulo, 83% disseram ter batido antes que seus filhos completassem 3 anos. E no Recife, 94% bateram em crianças antes dos 5 anos.


“Já com 1 ano de idade é muito frequente que as crianças sofram. Agora, o pico de violência sofrida pela criança entre 0 e 8 anos se dá entre 2 e 4 anos em todas as comunidades pesquisadas”, relata Hermílio.


Ao contrário do que se pensava, não é nem o pai nem o padrasto quem mais bate. A mãe aparece em primeiro lugar. Depois, a avó. “Não é que o homem seja pacífico e a mulher, violenta. Há uma hierarquia da prática da violência. Isso significa que o homem pratica mais violência contra a sua companheira, e esta por sua vez repassa a violência contra a criança”, explica o cientista social.


Outro mito desfeito: não é por ficar mais tempo com o filho que a mãe bate nele. “Só comparar, mãe que fica mais com mãe que fica menos, a que fica menos bate mais”.


Um dado curioso: em casas onde não há banheiro, ou têm um banheiro só, a criança apanha mais. “Por que isso? Porque o banheiro nessas comunidades é o único espaço da intimidade”, diz Hermílio.


Viver onde serviços são escassos interfere na qualidade de vida das crianças


A pesquisa constatou que viver em casas precárias e em comunidades onde os serviços são escassos em razão do abandono e da omissão histórica do Estado interfere na qualidade de vida das crianças. O que surpreendeu foi a percepção delas diante dessa realidade dura.


Quando os pesquisadores pediram às crianças que desenhassem o lugar em que vivem, as crianças desenharam casas coloridas, ruas limpas, espaço para brincar, família feliz, paz. O bairro ideal nascido na ponta do lápis desconcertou as próprias mães.


“O sonho deles. É o sonho das crianças que fosse daquele jeito que elas estão desenhando. Mas não é”, observa uma mãe.


“Você tem quase que uma glamorização e uma fantasia do ambiente, muito florido. Talvez seja o ambiente que elas gostariam que fosse”, diz Hermílio.


Mas essa percepção não lhes tira o senso de realidade e nem o desejo de morar em outro lugar.


Menina: Longe, longe, né? Tem que pegar um monte de ônibus, então vou de táxi.
Fantástico: Mas por que morar tão longe?
Menina: Porque eu quero. Porque lá não tem polícia.


Quando os pesquisadores perguntaram às crianças qual a principal forma de violência na rua, a maioria, nas três cidades pesquisadas, deu a mesma resposta: alguém sendo levado pela polícia.


Fantástico: Como é que a polícia fez?
Menina: Levou ele. Prendeu. Pronto. Só voltaram outro dia.
Fantástico: Mas bateu nele, não?
Menina: Bateu. Bateu na frente da minha tia ainda.
Fantástico: O policial? Bateu?
Menina: Veio guarda, veio polícia, veio bandido.


Método considerado mais eficiente para se proteger é cumprir a lei do silêncio


Para os pesquisadores, há uma consequência perversa em ações arbitrárias do Estado: a criança se confunde, e já não vê mais diferença entre atitude de policiais e bandidos.


“Esses papéis, eles não são muito nítidos: um é o portador da bondade e o outro, da maldade. Porque ambos, para elas, são capazes das duas coisas. Ambos podem proteger, mas ambos também podem punir de forma arbitrária”, avalia o pesquisador.


Outro dado alarmante: o método considerado mais eficiente para se proteger é cumprir à risca a lei do silêncio imposta pelo tráfico. “Como diz aquele ditado: fica surdo, mudo e cego”, diz uma das mães.


Menina: Porque criança não pode se meter não.
Fantástico: Criança não pode se meter, né? Por isso que você fica quietinha.
Menina: Sim.
Fantástico: Entendi.


Mas quem protege esta menina de 8 anos do trauma que sofreu ao ver um homem cair baleado diante dela?


Menina: Porque a cena que eu vi aí na frente eu não consigo nem lembrar.
Fantástico: É? Muito triste?
Menina: É.
Fantástico: A pessoa morreu?
Menina: Sim.
Fantástico: E você fica com isso na cabeça?
Menina: Fico.


Reduzir os assassinatos seria suficiente? Basta comparar Rio e Recife. De acordo com o Mapa da Violência divulgado no ano passado, com números de 2012, o Recife tem uma taxa de 52 homicídios por grupo de 100 mil habitantes. O Rio de Janeiro tem uma taxa bem menor: 21,5 homicídios por 100 mil habitantes. Mas o percentual de mães que batem nos filhos nas duas capitais é quase o mesmo: 73% em Recife, e 71% no Rio.


“Reduzir criminalidade é muito positivo, extremamente positivo, mas não é suficiente para garantir um cotidiano pacífico para as nossas crianças”, alerta Hermílio.


O vazio de oportunidades de trabalho para mãe e a falta de creche para a criança expõe uma menina de 5 anos a passar parte do dia na rua, diante de uma atividade ilegal.


Mãe: Eu trabalho na banca de bicho. Eu levo ela de manhã para a escola. Ela larga de 11 horas, e eu venho para cá.
Fantástico: O que você fala para a sua filha sobre trabalhar na banca de bicho?
Mãe: Isso eu não cheguei a falar com ela não. Eu só digo a ela que vou trabalhar. Ela sabe que é um trabalho, mas não sabe o que é.


Quase 100% das mães ouvidas dizem que bater nos filhos não resolve nada


Ela diz que, de vez em quando, bate na menina, embora não acredite que dê muito certo.


Fantástico: Você disse que não funciona dar o tapa, né?
Mãe: Isso.
Fantástico: Mas você mesmo assim já deu?
Mãe: Já.
Fantástico: Por que você deu sabendo que não funciona?
Mãe: Porque… Rapaz, agora você me pegou!


Essa contradição é o resultado mais avassalador do estudo: 99% das mães ouvidas dizem que bater nos filhos não resolve nada. “Esse eu diria que é o dado mais positivo da nossa pesquisa e pode orientar muito concretamente ações. Se você quer fazer uma ação para reduzir violência, você vai perder tempo tentando convencê-las de que não pode bater. Por que isso elas já sabem, assim, que não leva a nada. Você tem que ensinar como fazer.”, afirma o cientista social.


Ensinar, no sentido mais nobre da palavra, talvez seja a chave. A pesquisa comprova que nas famílias em que um ciclo escolar se completa, seja o Ensino Fundamental ou Médio, os pais batem menos nos filhos. “Quando você se educa, vai à escola, você aumenta as suas expectativas de mudar de vida, de melhorar de vida”, diz Hermílio,


Sem limites para as asas que a educação dá. O que eu quero ser quando eu crescer? Quero ser médica!”, diz menina.


Aí quem sabe a violência e a morte deixem de ser rotina banal e luto precoce.


Menina: Eu chorei.
Fantástico: Mas é triste mesmo.
Menina: Morte é triste!
Fantástico: Morte é triste, é verdade.





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