16/02/2013

Prosa de boa cepa: Zeca Baleiro, o escritor


Além de compositor e intérprete, Zeca Baleiro é também um cronista de percepção aguda e verve bastante irônica. Analisa-se, aqui, o seu livro Bala na Agulha - Reflexões de Boteco, Pastéis de Memória e Outras Frituras

Os talentos múltiplos que, de vez em quando, aparecem na mídia compensam a avalanche de mediocridade que ela tem vomitado. Quero me referir diretamente a Zeca Baleiro, cantor e compositor reconhecido pelas letras de música bem elaboradas e criativas, pela interpretação visceral e pelos projetos, como o Baile do Baleiro, de resgate da música popular brasileira, no Sesc-São Paulo, trazendo de volta ao público figuras que estão no ostracismo, como: Odair José, Benito de Paula, Vanusa, entre outras. Suas releituras sem preconceito das canções antes consideradas bregas abrem nova discussão sobre o que realmente atesta o bom gosto em arte.

O literato

Não bastasse todo esse movimento ascendente em torno da nossa música, não bastasse ter renovado o cenário musical tão baço, ele ainda se revela um pensador perspicaz e um escritor que merece reverência! Além de boas ideias e muita lucidez calcada num espírito irreverente, ele tem um discurso leve, mesmo para os assuntos mais densos, e demonstra intimidade com a língua portuguesa, pois escreve de acordo com o que preceitua a gramática padrão, no seu característico à-vontade. Só faz uma ressalva: a resistência voraz à reforma ortográfica. Logo nas primeiras páginas do seu primeiro livro, Bala na Agulha - Reflexões de Boteco, Pastéis de Memória e Outras Frituras, há uma explicação do editor: a obra não obedece à reforma ortográfica de 2008, "pelo fato de o autor se recusar a escrever palavrões como autorretrato e assembleia".

A estrutura

O livro está dividido em três partes: na primeira e mais longa, Bala na agulha, encontramos 42 crônicas que, na verdade, compunham as postagens do seu blog desde 2005, com temas variados, ou seja, é uma compilação de artigos seus anteriormente publicados na internet. São textos escritos despretensiosamente em quarto de hotel, na calma da sua casa ou na poltrona de um avião, revelando sua cosmovisão sobre comportamento, uso da língua portuguesa, música, literatura, cinema, religião, gastronomia; sem eximir-se, tantas vezes, de episódios marcantes da sua infância maranhense e das figuras que a povoaram intensamente.

Na segunda, intitulada Bestiário Pós-moderno, estão vários verbetes, definições irônicas de palavras, de acordo com seu olhar ácido e voraz para a realidade. A terceira - Curtas, grossas e algumas infames, estão provérbios, antivérbios, aforismo e desaforismos, constitui, todo o montante, uma compilação de pensamentos e versos casuais - muitos escarnecedores mesmo, mas divertidos e bem humorados, como é o caso de "Toddy amor que é bayer é bom" e "Na vida tudo se acumula / nem por isso / o filho é da mula".

Imagens recorrentes

Em todos os textos, aparece o protagonismo de um cidadão inquieto com a vida e o rumo que têm tomado os valores na sociedade contemporânea. Sensato, irônico, brincalhão, por vezes ácido, jamais adocicado, o cantor-compositor-escritor dispara a baladeira na praga do politicamente correto, critica "as novas e surpreendentes palavras que vêm sendo incorporadas à nossa língua com a velocidade típica dos tempos digitais"! (p.17) e neologismos insurgentes, como ´faltante´ e ´cadeirante´. Ele dispara: "Não bastassem pragas como o gerundismo propagado por atendentes de telemarketing e apresentadores de TV semianalfabetos - mania que não disfarça o nosso melancólico desejo de parecer americanos -, agora vejo surgirem como gremlins palavras tão estranhas quanto inadequadas, que as pessoas proferem com descarada naturalidade" (p.17). E acrescenta: "A nova ordem semântica não poupa crioulos, viados (com i mesmo!) e anões.

Como se expressões cristalizadas no repertório afetivo popular pudessem conter apenas discriminação e não tivessem significados outros, caros à nossa cultura. E como se a discriminação pudesse ser diluída e desfeita em expressões de mal disfarçada hipocrisia, como afro-brasileiro ou afro-descendente, cidadão de orientação sexual especial e sujeito dotado de nanismo" (p.19).

O olho crítico

Ele critica a cruzada ´atualista´ que se faz hoje, a falta de culto ao passado e a exigência de que tudo seja up to date. Sim, Zeca é um saudosista. Nenhuma lágrima, nenhum lamento pelo que passou, mas um olhar complacente para o que foi bom e não deveria ter sido tirado de cena em função, assim, de um novo cada vez mais efêmero.

O excesso de propagandas (até nas privadas dos banheiros públicos), de assédio da mídia, de oferta ilimitada de serviços, outdoors, panfletos, anúncios, reflete o mundo contemporâneo e sua poluição sonora e visual. Na crônica "Somente o desnecessário" (p.53), ele alfineta esse exagero no palavreado cada vez mais prenhe de insignificâncias e, sobretudo, a sobrecarga de informações desnecessárias que pululam em todos os discursos, desde o do garçom, ao oferecer uma iguaria, ao do comentarista de futebol, bem como o culto desmedido ao consumo vendido por uma publicidade que inventa necessidades que não existem: "Vivemos assim, atordoados por necessidades desnecessárias, urgências desimportantes, pendências que se revelam fantasiosas. Nem uma desarmada criança assiste a um desenho na TV sem que seja bombardeada nos intervalos por mil e uma propagandas com ofertas de brinquedos, algumas das quais engenhosas e desonestas. No mínimo uma covardia" (p. 54 e 55).O sociólogo Zygmund Bauman tem falado em suas obras - sobretudo em Modernidade Líquída, desses tempos em que nada mais é palpável, tudo escorre, passa rápido. Além dessa fluidez, ele enfoca a compulsão transformada em vício, a vida instantânea, o individualismo, entre outras questões que colocam o cidadão contemporâneo diante de um mundo de pessoas sem rosto. Imagino que as reflexões do Zeca Baleiro sejam as do cidadão cansado de toda essa fluidez, mas também de um leitor antenado com os estudos sobre o seu tempo.

FIQUE POR DENTRO

Releitura da língua portuguesa

Nas reflexões que Zeca Baleiro faz sobre o uso da língua portuguesa, foge a uma postura purista e demonstra bom-senso em relação aos equívocos, aos abusos neológicos desprovidos de sentido, à avalanche de palavras-chave para traduzir a pós-modernidade. Na crônica "Os diferenciados" (p.76), cita, entre outras variações linguísticas com que convive, o internetês, o dialeto do ABC paulista e menciona o vocabulário artificial que nos circunda: "Não consigo ver legitimidade em palavras como: presencial, semipresencial, fidelização, motivacional etc" (p. 77) "Não à toa, palavras com recorte vitorioso estão na moda e infestam a fala dessa elite risível: "superação", "desafio", "empreendedor", "upgrade", "especial", "top", "ouro", "master" e a maldita e onipresente "diferenciado". O grande sonho de consumo dessa gente parece mesmo ser diferenciada. O que eu não consigo entender, nem que eu viva cem anos, (e aqui tenho que confessar, acho que não suportaria tamanha longeva proeza), é: se todos se tornarem diferenciados, não ficarão então todos iguais?" (p.79).

AÍLA SAMPAIOCOLABORADORA*
*Professora da Unifor 
Diário do Nordeste

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