28/11/2013

De pão vive o homem


Mario Sergio Conti
O colunista escreve às quintas-feiras

De pão vive o homem (Alice Vergueiro/Futura Press/Estadão Conteúdo)
Para disputar o mercado das almas, o título do documento do papa indica o caminho: a alegria
No início de “A alegria do Evangelho”, o próprio Francisco nota que os documentos papais “não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, e acabam rapidamente esquecidos”. Há vários motivos para isso. O mais evidente é a colossal chatice dos escritos pontificais. Eles parecem produzidos por uma comissão vaticana que salpica versículos num texto desenxabido, que reafirma ad nauseam os dogmas católicos para um mundo que está noutra. A primeira exortação apostólica de Francisco não foge à tradição: é aos bocejos que se percorrem as 80 páginas da peroração.
Vencida a chatice da forma, o conteúdo tem interesse. Afinal, Francisco tomou posse há pouco e disse coisas que, se não se desviaram das normas da Santa Sé, contrastaram com o conservadorismo pétreo dos seus antecessores. Na viagem ao Brasil, por exemplo, o papa disse sem papas na língua que o povo tinha razão em protestar.
A exortação tem 258 itens, mais de duzentas notas de rodapé e transcreve centenas de passagens bíblicas. Mas, para além da prolixidade, é possível perceber que Francisco tem o propósito de conquistar adeptos para o catolicismo. A preocupação não é nova. A ordem à qual ele pertence, a Companhia de Jesus, surgiu no século XVI com intenção missionária. Novo é o ambiente no qual se enfatiza a conversão. Ela é uma resposta à sangria de fiéis: a religião que mais cresce hoje é a muçulmana; entre as designações cristãs, o catolicismo perde adeptos para as igrejas evangélicas, caso do Brasil.
Para disputar o mercado das almas, o título do documento indica o caminho: a alegria. Iniciada no Antigo Testamento, uma extensa tradição teológica exalta o júbilo. O papa se empapou dela, mas foi bem mais palpável ao descrever o aborrecimento dos fiéis, a dificuldade deles em se regozijar. Insistiu: os católicos não convencerão ninguém de cara emburrada ou repetindo “ó vida, ó céus, ó azar”. Há aí uma característica pessoal — Francisco é alegre. Ele sorri com mil dentes, conta piadas, tem gestos engraçados, está sempre satisfeito. Seus traços, que são os de uma caricatura, lembram Zé Colmeia.
Como na galeria cardinalícia gordotes idosos ostentam sorrisos forçados, a alegria do pontífice parece autêntica. Mas não está provado que esse modo de ser preste para evangelizar. Ao contrário: o rebanho de muçulmanos e evangélicos parece crescer justamente porque os seus pregadores são sisudos. Ninguém é menos alegre que um aiatolá ou um pastor. Eles se assemelham a aguerridos jesuítas de antanho, que dilataram a Fé e o Império, enquanto o verdadeiro jesuíta, Francisco, prega a resignada alegria dos franciscanos.
O reino da alegria já deu o ar da graça quando o papa veio aqui. Os católicos que sorriam sem parar em Copacabana mais se congregavam do que evangelizavam. Riam do quê? Estavam à margem do ânimo nacional, que era de contestação. Nos eventos de junho houve humor acrimonioso, num contexto marcado pela gravidade insurrecional. Na sua raiz estava a ira (o quarto dos sete pecados capitais), e não a alegria dos carolas de Copa.
Francisco tocou no assunto na sua prédica: “as cidades são cenário de protestos em massa, onde milhares de habitantes reclamam liberdade, participação, justiça”. No trecho, deixou a alegria de lado. Talvez porque bilhões vivam hoje sem alegria, e nenhum sem pão. É possível passar anos na tristeza, mas ninguém dura uma semana sem água.
“A alegria do Evangelho” fala do mundo material. Ele repisa a doutrina social da igreja, que começou a tomar forma em 1891 com a Rerum Novarum, mas faz adaptações de caráter sociológico. Leão XIII tratou na sua encíclica da condição operária, reconheceu a existência da luta de classes e defendeu a conciliação entre capital e trabalho. Já Francisco não emprega nenhuma vez a palavra “capitalismo”. Em vez dela, usa “uma nova e cruel versão do fetichismo do dinheiro” e “ditadura de uma economia sem rosto”.
Se não discorreu sobre a classe operária, citou uma dezena de vezes os “excluídos”, sustentando que eles não são “explorados”, mas “sobras” que o sistema econômico não integra. A sua opção continua a ser pelos pobres, mas, como João Paulo II e Bento XVI, ele tomou distância da teologia da libertação, na qual a preferência pelos deserdados adquiriu dimensão secular e política.
O papa, por fim, passou a galope por temas que dizem respeito exclusivamente a eles lá, os católicos: condenou o aborto e a ordenação de mulheres. Não obstante, afirmou que os fiéis precisam tomar a iniciativa e buscar as ovelhas desgarradas onde elas estão, na vida concreta. Para tanto, a igreja deve se descentralizar. É o que fizeram de há muito muçulmanos e evangélicos, religiões que prescindem de um monarca absoluto.

http://oglobo.globo.com/cultura/de-pao-vive-homem-10901823

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